Esta tarde nenhuma gaivota se abeirou do barco "O PIO", Uma gaivota do bando ficou pelo caminho, sem pio, portanto. Deixou-nos o seu último rasto.... Ao longe, as que ficaram fizeram-se ao mar acompanhando os últimos barcos. Também por aqui cada um fica entregue à sua sorte.... Obrigado, Gaivota, pelas horas que me fizeste deliciar com o teu voo....
O sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda.
1. Perguntaram, há dias, a um refugiado a razão que o tinha levado a abandonar o seu país, arriscar tudo e encontrar-se naquela situação horrível, rodeado de desconhecidos, encurralados pela polícia, sem destino garantido. A resposta surgiu da forma mais natural e óbvia: eu procuro uma vida boa e no Iraque já não se pode viver.
Aristóteles, um dos fundadores da ética filosófica ocidental, não diria melhor. O desejo e a tenacidade são as asas do ser humano. Na desordem do mundo, impelido pela esperança, mesmo contra toda a esperança, acredita misteriosamente num horizonte de justiça e misericórdia.
Ao começar esta crónica deparei com um texto que li, pela primeira vez, há 25 anos. Em 1990, a direcção da Revista Portuguesa de Filosofia pediu um texto ao filósofo Paul Ricoeur, autor de uma vasta e multifacetada obra de hermenêutica. A revista conseguiu a publicação de um texto inédito notável e no qual expunha a sua distinção entre ética e moral [1].
Nem a etimologia nem a história o obrigavam a marcar essa diferença, tanto mais que se tornou corrente usar indiferentemente uma ou outra palavra, para designar a fonte e as normas do comportamento humano, enquanto humano. Não se esqueça que existe, paradoxalmente, muita moral sem ética nenhuma e muita ética à vontade do freguês.
O filósofo francês tornou fecunda essa distinção. Recolheu as duas heranças mais famosas da ética filosófica: a aristotélica - a do desejo, do prazer, da felicidade - e a kantiana - a da norma, da lei, do dever. Sem cair em falsas simplificações, desenvolveu-as nos debates sobre a justiça de J. Rawls e M. Walzer e assumiu as argúcias virtuosas de Aristóteles.
Para Ricoeur, o que é visado pela ética define-se nestes termos: a procurada vida boa, com e para os outros, em instituições justas.
É normal e sadio que cada um procure a sua realização humana, enquanto humana, isto é, o livre desabrochar das suas aspirações e capacidades mais profundas. Não de forma isolada e egoísta, pois implica o reconhecimento, nos outros, de igual desígnio e da mesma capacidade de procura humana de felicidade. Para superar as desigualdades inevitáveis existem processos justos e o recurso humano à solicitude, à compaixão para com os mais débeis.
Numa sociedade não bastam, porém, as relações de amizade interpessoais. Por isso, P. Ricoeur acrescenta: em instituições justas. A vida de uma comunidade histórica exige um sistema de partilha, de direitos e de deveres. A justiça consiste em atribuir a cada um a sua parte. Todos e cada um são destinatários de uma partilha justa. O sentido do que é justo faz-se notar, por vezes, mediante a exclamação da sua ausência: é injusto!
2. I. Kant resolveu eliminar do desígnio ético o desejo, o prazer, a felicidade. Esta depuração leva ao imperativo universalista, nu e cru: ”age unicamente segundo a máxima que faz com que tu podes querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal”. A segunda fórmula deste imperativo apresenta-se mais enriquecida: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.
A grandeza e a exaltação desta fórmula nunca poderão ser exageradas e, no entanto, talvez seja a mais esquecida: a pessoa nunca pode ser usada como um meio para algo melhor do que ela. Não tem preço, é um valor absoluto.
Ricoeur não se esquece da ética das virtudes que tornam bom quem as vive e boas as suas acções. Ao concluir o seu texto, lembra que a ordem de prioridade das reivindicações de segurança, liberdade, solidariedade, etc., não são sempre as mesmas em cada povo e em cada época. Exige um debate público, sem garantias de êxito. Como dizia Aristóteles, a equidade (epieikeia) é superior à lei, pois é um correctivo da lei que por natureza é geral, abstracta não pode prever tudo. A justiça exerce-se no concreto, no singular, no imprevisto.
3. Não renego o que escrevi, mas a realidade actual é outra. A jornalista Aura Miguel perguntou ao Papa Francisco como estava a viver a crise dos refugiados. A resposta deveria ser o nosso texto de meditação para não nos satisfazermos com alguns gestos de solidariedade, deixando o mundo correr na sua loucura para a guerra que se prepara sob os nossos olhos: “Vemos estes refugiados, esta pobre gente que escapa da guerra, da fome, mas essa é a ponta do icebergue. Porque debaixo dele, está a causa; e a causa é um sistema socioeconómico mau e injusto, porque dentro de um sistema económico, dentro de tudo, dentro do mundo - falando do problema ecológico-, dentro da sociedade socioeconómica, dentro da política, o centro tem de ser sempre a pessoa. E o sistema económico dominante, hoje em dia, descentrou a pessoa, colocando no centro o deus dinheiro, que é o ídolo da moda. Ou seja, há estatísticas, não me recordo bem (isto não é exacto e posso equivocar-me), mas 17% da população mundial detém 80% das riquezas”.
Os ídolos da eterna juventude, do permanente crescimento económico, do dinheiro, do totalitarismo da falsa comunicação alimentam-se do desejo de todos ao serviço de uma elite.
[1] Paul Ricoeur, Ethique et Morale, Revista Portuguesa de Filosofia, Janeiro-Março 1990, págs 5-17
1. "O Papa é católico?" Esta é a pergunta que a revista Newsweek, pensando na sua visita aos Estados Unidos, pôs na capa por cima de uma imagem pouco nítida de Francisco. E, para se perceber melhor a revolução que Francisco está a fazer - "lavou os pés a presos, muçulmanos e mulheres; recusou vestimentas esplendentes; quis como carro um Ford Focus com cinco anos, e uma casa modesta; dirigiu-se aos católicos divorciados e até sugeriu que não lhe competia julgar os gays; criticou o aquecimento global e a desigualdade de rendimentos" -, compara-o com o arcebispo de São Francisco, Salvatore Cordileone, favorável à Missa em latim e que continua num "tradicionalismo sexual que vai contra o tom de tolerância de Francisco", afirmando, por exemplo, que a erosão do casamento tradicional desembocaria num "regresso ao paganismo de outrora", e que o sexo gay e a masturbação, comportamentos sexuais não procriativos, são "males graves, demoníacos". Até parece não pertencerem os dois à mesma Igreja. Mas não se pense que Francisco vai mudar a doutrina do catolicismo: "A mudança é pastoral, não doutrinal."
A 7 de Setembro foi o The Washington Post a sublinhar "a reacção conservadora que se está a gerar dentro do Vaticano". Na frente dessa dissensão, encontra-se o cardeal R. Burke, que prometeu "resistir" às mudanças liberais de Francisco, sublinhando que o poder do Papa "não é absoluto": ele "não tem o poder de mudar a doutrina". Enquanto "os aliados progressistas de Francisco o aclamam como um revolucionário", "a rebelião conservadora está a adquirir múltiplas formas", também em livros e nas redes sociais. O autor do texto, Anthony Faiola, elenca oito das afirmações e atitudes "mais liberais" de Francisco: "Mesmo os ateus podem ir para o Céu"; o carreirismo na Igreja é uma "lepra"; "se alguém é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?"; "hoje", contra "a globalização da indiferença", "temos de dizer "não" a uma economia da exclusão e da desigualdade. Essa economia mata"; quando Diego Neria Lejarraga, nascido mulher, depois de mudar de sexo, se encontrou com Francisco e lhe perguntou se tinha lugar na Igreja, o Papa respondeu abraçando-o; na encíclica sobre o meio ambiente, colocou a Igreja na frente da obrigação moral por uma "ecologia integral"; no Ano da Misericórdia, alargou aos padres o poder de perdoar às mulheres que abortaram; a um mês do Sínodo, acelerou, simplificou e quer que sejam gratuitos os processos de declaração de nulidade dos casamentos, e pediu ao clero que mantenha "as portas abertas" aos católicos que voltam a casar-se.
Também o The New York Times de 19 de Setembro chamou para a primeira página a figura de Francisco, "um Papa humilde, a desafiar o mundo", "um pastor e não um rei", que "alcançou em pouco tempo uma estatura global única". O seu imperativo de mudança da Igreja e do mundo provocou ansiedade e esperança: "Muitos conservadores projectam nele os seus medos. Muitos liberais assumem que é uma alma gémea. Outros argumentam que Francisco está menos preocupado com a esquerda ou a direita, pois do que se trata é de inverter a diminuição da popu- laridade da Igreja na América Latina e não só." Independentemente do que vá acontecer, "a sua missão espiritual de colocar os pobres no centro da Igreja já lhe permitiu empurrar para o centro do debate mundial questões como as alterações climáticas, as migrações, o repensar da economia capitalista do pós-2008".
2. O Papa é católico? O próprio Francisco, na viagem de Cuba para os Estados Unidos, respondeu a um jornalista, com algum humor cáustico: "Um cardeal amigo contou-me que foi vê-lo uma senhora, muito preocupada, muito católica, um pouco rígida, mas boa pessoa. E perguntou-lhe se era verdade que na Bíblia se falava de um Anticristo. Depois, perguntou-lhe se falava de um Anti-Papa. E, quando ele lhe perguntou a razão destas perguntas, ela respondeu: "Tenho a certeza de que Francisco é um Anti-Papa, porque não usa os sapatos vermelhos." Quanto a ser comunista: tenho a certeza de não ter afirmado senão o que ensina a Doutrina Social da Igreja. Sou eu que sigo a Igreja, e sobre isto julgo não estar errado. Talvez algo tenha dado a impressão de ser um pouco mais "à esquerda", mas seria um erro de interpretação. Quanto a ser católico, se for necessário recitar o Credo, estou disposto a fazê-lo." E riu escancaradamente.
3. Afinal, o que é ser católico? Claro, professar o Credo. Mas, antes de mais, ser cristão. Acreditar, não em dogmas reificados, mas numa pessoa, Jesus Cristo, e no seu Evangelho, notícia boa e felicitante para todos, pois traz a salvação, o sentido pleno da vida. Entregar-se confiadamente a Deus, que é Amor. E tentar pôr essa fé em prática, a favor de todos, começando pelos mais frágeis.
Francisco acaba de dizê-lo de forma lapidar em Cuba: "Onde há misericórdia, aí está o espírito de Jesus. Onde há rigidez, estão apenas os seus ministros."
Bravo esmolfe.Vieram de longe, de muito longe, quiçá, antes do tempo.
Recorro ao seu perfume e ao seu sabor de antanho (uau!!!) para ver se me animam e protegem desta pré-gripe que parece acercar-se. Meu querido Vale, tão longe mas sempre tão por dentro de mim. Obrigado.
A primeira parte de uma "longa metragem". A segunda, com procissão, banda , adufes e almorafizes, para além de gente nobre, mais logo. Os meus parabéns aos incansáveis homens, nulheres e jovens do Grupo Cultural Os Maçaenses, com uma palavra, também, para as autarquias maçanicas, Câmara e Junta de Freguesia incluídas, pelo inquestionável apoio.
Na preparação da viagem aos EUA, o Papa lembra aos americanos que todos são responsáveis por todos
1. Este Papa continua a ser visto como um provocador na Igreja e na sociedade, a nível local e global. Uns gostam muito, outros não gostam mesmo nada. Os que se alegram com a sua chegada dizem que ele anda a reabrir janelas e a arrombar portas construídas para abafar a revolução libertadora de João XXIII e do Vaticano II.
Os assustados com a sua desenvoltura teológica e canónica esperam que a idade e o cansaço se encarreguem de os aliviar deste pesadelo. Não podem com as suas manias colegiais e a sistemática teimosia em interpretar os textos dos Evangelhos em ligação com as situações actuais da vida das pessoas e dos grupos, sejam essas situações de ordem espiritual, social, financeira, económica ou política.
Porque não deixa ele os textos bíblicos dormir em paz e sossego? A sua antiguidade merece e recomenda um eterno descanso.
Bergoglio, porém, de forma muito original e criativa, escolheu para as suas intervenções, mensagens, homilias, discursos e encíclicas, o método teológico que tinha sido desactivado por várias instâncias romanas. É precisamente esse método que semeia desassossego e esperança em tudo quanto diz e faz.
Seria uma banalidade dizer que a chave do seu pensamento é teológica e cristológica. O importante é saber que Deus e que Cristo falam e actuam nas suas intervenções.
Para ficarmos esclarecidos, basta ouvir o que o Papa Francisco declarou na Praça de S. Pedro, no dia 6 de Setembro, ao comentar o texto de S. Marcos [1]: “Deus não está fechado em si mesmo, mas abre-se e põe-se em comunicação com a humanidade. Na sua misericórdia imensa, supera o abismo da diferença infinita entre Ele e nós, vem ao nosso encontro. Para realizar esse encontro com o ser humano, tornou-se humano: para Ele não é suficiente falar connosco mediante a lei e os profetas, mas torna-se presente na pessoa do seu Filho, a Palavra feita carne. Jesus é o grande “construtor de pontes”, que constrói, em si mesmo, a grande ponte de comunhão com o Pai”.
Bergoglio não ficou por aqui. “ Este Evangelho também fala de nós: muitas vezes estamos fechados em nós mesmos e criamos muitas ilhas inacessíveis e inospitaleiras. Até as relações humanas mais elementares criam, por vezes, realidades incapazes de abertura recíproca: o casal fechado, a família fechada, a pátria fechada… Isto não é de Deus! Isto é nosso, é o nosso pecado. Contudo, na origem da vida cristã, no baptismo, estão precisamente aquele gesto e aquela palavra de Jesus Effata! – Abre-te”.
2. Tenho, diante de mim, L’ Osservatore Romano [2] e estou espantado com um Papa que consegue ser mesmo “Sumo Pontífice”, o homem de pontes para todos os universos e para todas as situações! Se fossem só discursos poderia supor que dispõe de um centro de produção literária. No entanto, tudo ou quase tudo tem a marca, o estilo, o cunho pessoalíssimo deste argentino. É impossível ser trabalho de encomenda.
Não posso, numa crónica, dar conta deste vasto mundo de intervenções. Destaco que na mensagem que dirigiu para o encontro de Tirana [3], sobre a guerra e a paz, observa que também é violência levantar muros e barreiras para impedir um lugar de paz. É violência rejeitar quem foge de situações desumanas. É violência descartar crianças e idosos da sociedade e da própria vida! É violência ampliar o fosso entre quantos desperdiçam o supérfluo e aqueles que carecem do indispensável.
Os cristãos, perante a tragédia de dezenas de refugiados que fogem da morte devido à guerra ou à fome, não podem dizer a estes abandonados: coragem, paciência!… A esperança cristã é combativa, com a tenacidade de quem caminha rumo a uma meta segura. Ao aproximar-se o Jubileu da Misericórdia, o Papa dirige um apelo às paróquias, às comunidades religiosas, aos mosteiros e aos santuários de toda a Europa a expressar o aspecto concreto do Evangelho e a acolher uma família de refugiados, a começar pela minha diocese e pelas paróquias do Vaticano. Dirijo-me aos meus irmãos bispos da Europa, verdadeiros pastores, que acolham este meu apelo.
Na preparação da viagem aos EUA, lembra aos americanos que todos são responsáveis por todos.
3. Essa atitude do Papa resulta do que ele pensa da própria Igreja. Nos Evangelhos, a assembleia de Jesus tem a forma de uma família, de uma família hospitaleira. Não de uma seita exclusiva, fechada: nela encontramos Pedro e João, mas também o faminto e o sedento, o estrangeiro e o perseguido, a pecadora e o publicano, os fariseus e as multidões. Jesus não cessa de acolher e falar com todos, até com quem já não espera encontrar Deus na sua vida. Esta é uma lição forte para a Igreja. Os próprios discípulos são eleitos para cuidar desta família dos hóspedes de Deus. Uma Igreja que seja verdadeiramente segundo o Evangelho não pode deixar de ter a forma de uma casa hospitaleira, sempre de portas abertas. As igrejas, as paróquias e as instituições com as portas fechadas devem chamar-se museus.
O Papa não ficou por aqui.
[1] Mc 7, 31-37
[2] Edição semanal de 06.09.2015
[3] Comunidade de Sto Egídio COMENTÁRIO UM TEXTO TÃO ILUMINADO QUANTO A INTERVENÇÃO DE FRANCISCO!!!!
PARA LER E....PARTILHAR!!!... UMA REFLEXÃO QUE VAI ALÉM DAS BARREIRAS DA CRENÇA OU NÃO EM DEUS. UM TEXTO ESCRITO POR UM HOMEM DESTE TEMPO, tal como Jesus, o HOMEM de TODOS OS TEMPOS! Obrigado , Frei Bento
1. Ninguém pode ignorar. As imagens são trágicas, de horror: homens, mulheres, crianças, a correr ou encurralados, fugindo da morte e em busca de um sítio para a esperança. E sabe-se que não se pode ficar indiferente e que é preciso agir. Em nome de quê? Em nome da humanidade que a todos une, independentemente de culturas, línguas, religiões diferentes. Em nome de valores fundamentais que definem a Europa: a dignidade, a solidariedade, os direitos humanos. Em nome das raízes cristãs. Merkel disse bem: também porque somos cristãos. E há um investimento demográfico.
A afirmação mais revolucionária da história pertence a Jesus: "O homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem." A salvaguarda do sábado era um preceito que se dizia divino. Mas Jesus, transgredindo a lei, curava ao sábado, dizendo assim que o critério da sua interpretação deve ser a defesa da vida e a realização do ser humano, de todo o ser humano. E, em consequência, lá está o capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus com o chamado "Juízo Final", no sentido da verdade que deve percorrer a existência humana e a história: "Vinde, benditos de meu Pai, porque tive fome e destes--me de comer, tive sede e destes-me de beber, estava nu e vestistes-me, na cadeia ou no hospital e fostes ver-me." Nada se pergunta de directamente religioso ou confessional.
2. O homem é rácio-emocional: afectivo, movido por emoções, mas, ao mesmo tempo, racional, devendo conduzir-se pela razão. A razão sozinha pode ser cruel, mas a simples bondade emotiva, sem inteligência, pode levar a problemas maiores e a becos sem saída.
Naquilo que nos ocupa, isto significa que não basta o sentimento. Assim, é uma lástima que a Europa seja incapaz de unir-se para encontrar solução para este problema gigantesco dos refugiados e dos fluxos migratórios, que só pode ser minorado dentro de uma política comum e na colaboração dos Estados, da sociedade civil, de organizações religiosas, como pediu Francisco. Exige-se generosidade e competência e eficiência, mas acompanhadas da necessária lucidez, como manda também o Evangelho: "Simples como as pombas, prudentes como as serpentes." A política de acolhimento de refugiados e outros não pode dar azo ao incremento da extrema-direita política, com incitamentos racistas e xenófobos. Aí está a necessidade de atacar os traficantes de pessoas e a atenção a possíveis infiltrações jihadistas. Como já aqui tenho escrito, será preciso atacar e destruir com a força das armas, no terreno, o bárbaro e intolerável autoproclamado Estado Islâmico.
3. Somos inocentes em relação a esta tragédia? Claro que não. E não é preciso estarmos constantemente a massacrar-nos com a história, verdadeira, da exploração: os impérios coloniais, o ouro da América, o tráfico de escravos, a divisão da África no século XIX, a divisão do Médio Oriente na sequência da I Guerra Mundial... Lembro apenas o que sucedeu mais recentemente com a insensatez das guerras no Iraque e na Líbia, levadas a cabo pelos Estados Unidos e a Europa. Como escreve o filósofo Bernardo P. Andreo, estas são as causas próximas da tragédia. A Guerra do Iraque "desestabilizou a precária situação de paz da zona conseguida ao longo de décadas. Tratava-se de uma paz imposta e mortal para muitas pessoas. Um rosário de regimes ditatoriais impunham-se na zona, mas garantiam que a barbárie não se estendesse. Assim, Afeganistão, Paquistão, Irão, Iraque, Síria e Jordânia eram regimes estabilizados que exerciam um nível de violência contido. A intrusão dos Estados Unidos fez voar pelos ares aquele equilíbrio instável e abriu a caixa das abominações." A guerra contra a Líbia foi "outra conta deste rosário de barbárie. Kadhafi passou de o amigo do Ocidente, que todos acolhiam, ao diabo em pessoa", seguindo-se a atomização da zona em grupúsculos apoiados nas armas que o Ocidente entregou aos grupos hostis ao regime. E há a Síria.
Mas também é preciso dizer que a Europa e o Ocidente não são os responsáveis por todos os males do mundo. Assim, por exemplo, há quem pergunte, com razão, porque é que os refugiados, na sua maioria muçulmanos, não procuram para refúgio também países islâmicos ricos da região, como a Arábia Saudita, os Emiratos Árabes Unidos, o Koweit... E porque é que o KAICIID não tem a sua sede em Riade, por exemplo.
4. Como escreveu o teólogo José Ignacio González Faus, a pensar nos fluxos migratórios, trata-se de um "problema insolúvel": "Porque nem nós podemos acolher ao mesmo tempo milhões de imigrantes nem eles podem deixar de emigrar, dadas as suas condições de vida e as nossas." Mais uma razão para agir segundo a razão na próxima Cimeira Ambiental da ONU, em Paris, "porque os entendidos prognosticam uma terceira onda migratória, devida à mudança climática que afectará sobretudo os países do Sul".