Sábado, 30 de Outubro de 2010
WEBANGELHO DE ANSELMO BORGES

PE ANSELMO BORGES

IN DN HOJE 

 

OS FINADOS

 

Característica essencial do nosso tempo é fazer da morte tabu, talvez o último tabu. Nunca tinha acontecido na história da humanidade.

De qualquer modo, as nossas sociedades ainda mantêm dois dias por ano (1 e 2 de Novembro) em que permitem a visita dos mortos. Os cemitérios enchem-se e as pessoas ali estão ou por ali andam, numa recordação, talvez numa prece, num choro íntimo ou exteriorizado, e interrogando-se sobre o mistério da morte, esse mistério absolutamente opaco e laminante.

A morte põe-nos em confronto com o nada e abala-nos desde e até à raiz. Martin Heidegger foi o filósofo do século XX que levou mais fundo o pensamento sobre a morte. O homem é o ser da possibilidade, o existente para quem no seu ser a questão é esse mesmo ser, isto é, a quem o seu ser é dado como tarefa, como poder ser. Ora, a morte é a sua possibilidade "mais própria", pois é a que mais o caracteriza, "irreferível", pois corta a relação com tudo o resto, remetendo-o para si próprio, "intranscendível", pois, enquanto possibilidade da impossibilidade, é a possibilidade extrema, a que se não pode escapar. A tentação permanente é distrair-se e não assumir a morte como essa possibilidade mais própria, irreferível e intranscendível, escapando-lhe pelo palavreado, pelo recurso ao "toda a gente morre", mas não propriamente eu. O homem cai então no esquecimento de si mesmo e perde-se numa existência inautêntica.

Frente à morte, debatemo-nos com paradoxos, que o filósofo Gabriel Amengual sintetizou.

Não é afinal a morte a coisa mais natural? Todo o animal perece. Mas a questão é que a morte humana não é redutível a um facto meramente biológico. Porque a morte afecta a pessoa enquanto tal, um quem, não um algo, alguém. "Ai que me roubam o meu eu!", clamava Unamuno perante a morte.

Há uma imensa variedade de mortes: uns morrem de velhice, outros de doença, outros de morte súbita, morre-se na guerra, num terramoto, num acidente... Mas há algo de comum nesta variedade: algo de enigmático, misterioso e indefinível se passa. É "o mais enigmático e ao mesmo tempo o mais sério, o sério por excelência, pelo seu carácter definitivo, irrepetível, irrevogável". Sobre a morte não temos nenhum poder, é ela que chega e comanda, iniludível e irremediavelmente. E todos morremos, mas a morte é sempre única e singular: cada um morre a sua própria morte.

A morte é o mais próprio do ser humano, mas, ao mesmo tempo, o mais estranho. Por isso, Freud escreveu que, "no fundo, ninguém crê na sua própria morte, ou, o que é o mesmo, no inconsciente todos nós estamos convencidos da nossa imortalidade". A minha morte é para mim inconcebível: ninguém pode conceber-se morto.

Todos sabemos que havemos de morrer. Mas este saber é um saber enigmático e especial: é sobretudo com a idade que nos apercebemos de que a passagem do tempo é inexorável e tem um limite para cada um.

A morte é o que temos de mais certo e ao mesmo tempo de mais incerto: não sabemos onde nem quando nem como morreremos. Outra vez: ela é o mais conhecido e ao mesmo tempo o mais desconhecido: ninguém sabe o que é morrer nem o que é estar morto.

Morremos porque somos corpóreos, mas quem morre é o homem. A morte afecta o homem todo. Daí, a pergunta inelutável: como é que alguém, uma dignidade, se pode tornar ninguém, coisa que apodrece?

E aqui está o paradoxo mais radical. Como seres históricos, na tarefa de nos fazermos, só no fim poderemos, como totalidade, dizer o que somos. Mas precisamente aí, pela morte, deixamos de ser neste mundo. Quem nos diz então o que verdadeiramente somos?

Os mortos são os finados. Na morte, chega-se ao fim. Que fim é esse? Esse fim com que é que confina? Com o nada enquanto termo de tudo ou aquele nada que é ocultação da Realidade primeiríssima que a tudo dá sentido, sentido último e salvação e onde por fim seremos nós?

 



publicado por animo às 09:30
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Março 2018
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30
31


posts recentes

DA ARTE E DOS ESPAÇOS INE...

OBRIGADO, MANUEL

ANTONIO COLAÇO NO "VOCÊ N...

PE ANSELMO BORGES NOS ANI...

ANA SÁ LOPES NOS AAAANIMA...

ANA SÁ LOPES NOS ANIMADOS...

O OUTRO LADO DO AAANIMADO...

LISBOAS

CHEF PEDRO HONÓRIO OU AS ...

BALANÇO FINAL . JOAQUIM L...

REGRESSARAM OS AAANIMADOS...

IN MEMORIAM ANTÓNIO ALMEI...

PE ANSELMO BORGES NÃO TE...

MINISTRO CAPOULAS SANTOS ...

WEBANGELHO SEGUNDO ANSELM...

CARDIGOS, AS CEREJAS E O ...

trip - ir a mundos onde n...

´WEBANGELHO SEGUNDO ANSEL...

ANDRÉS QUEIRUGA EM PORTUG...

WEBANGELHO SEGUNDO ANSELM...

arquivos

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Outubro 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

tags

todas as tags

links









































































































































































































subscrever feeds