
O Francisco Colaço Pedro é um jovem jornalista, filho de amigos, amigos da ânimo
e que, neste momento,está por Timor empenhado num outro projecto fora da sua área de formação. Os pais aceitam partilhar as experiências do Francisco por terras de Timor com os amigos. É o que fazemos.Uma extensa leitura para o fim-de-semana!Editaremos mais fotos para a semana!
TIMOR. TANTO PARA CONHECER
Os meus amigos de cá têm uma forma estranha e simples de se divertir nas noites. Tiram fotos ou fazem vídeos e riem muito. Pouco depois, vêem essas mesmas fotos ou vídeos no computador e riem muito. No sábado passado, estava a fumar um cigarro doce de cravinho no quintal das professoras portuguesas de Same, bem no interior da ilha, quando me chamam mais uma vez: “Francisco, vem cá ver!” Lá estavam reflectidas no ecrã as nossas caras de parvos a cantar coisas parvas. Mas, automaticamente, salta-se para outro vídeo. Vejo no ecrã pequeno umas pessoas ainda mais pequenas a cantar os parabéns a alguém. Devo ter demorado uns 30 segundos a perceber o que se estava a passar. Foi lindo! Uns, depois outros, depois outros, os meus amigos de repente tão estupidamente perto, dentro dum aparelhozeco no meio das montanhas de Timor. A surpresa. A saudade. A lagrimazinha. Daquelas coisas tão simples e simplesmente arrebatadoras. Foi lindo! – Muito, muito obrigado! – Já há muito que estou para contar coisas daqui.

Agora aproveito e faço-o em resposta ao vídeo. Deu-me para escrever coisas à toa, sem grande sentido, para aqueles que tiverem paciência para ler, e juntar umas fotos. Envio-vos este mail, a todos os que tiveram alguma coisa a ver com os vídeos maravilhosos que recebi, a todos os que me deram os parabéns e a todos os que, tal como eu, se esquecem ou nunca sabem dos aniversários dos outros. Aproveito para contar que o meu fim-de-semana foi em grande. Ouvi o “parabéns a você” em várias línguas e umas 5 vezes (não contando com o vídeo, que revi mil vezes). Na sexta adormeci no meu quartinho em Díli alcoolizado e feliz. No sábado acordei e zarpei num jipe alugado rumo ao centro da ilha, e só parámos para um jantar magnífico na casa das professoras portuguesas dessa vila perdida no meio das montanhas. Domingo subimos o Ramelau, a montanha mais alta de todas as antigas colónias portuguesas (3000 metros).

Na subida, vultos deslizando através do imenso nevoeiro, passámos por enormes florestas de árvores mortas, onde o napalm indonésio não deixará tão cedo voltar a vida. No topo, nós, uma imagem da nossa-senhora-de-alguma-coisa e uma placa: “PORTUGAL, alto império que o sol logo em nascendo vê primeiro”. E na segunda-feira, na descida após o acampamento junto ao cume, a improvável (inevitável?) aventura. Duas francesas e uma australiana dirigem-se a nós com a delicadeza de quem esteve à beira de perder a vida. Resolveram fazer o trajecto de carro à noite e, já perto de onde começa a caminhada, ficaram com o carro balançando entre a estrada e a ravina, duas rodas no ar, duas em terra.

E nós, estrada bloqueada, presos na montanha. Telefona à embaixada de Portugal, telefona à da Austrália, aos bombeiros, à polícia das Nações Unidas. Lá aparecem num sofisticado carro UN um gorducho do El Salvador e um paquistanês. (A UN é assim uma família interminável, corrompida, esbanjadora, cheia de racismo e corrupção e que por cá vai fazendo de vez em quando umas coisas interessantes fora do alimentar regular de tachos). Muito prestáveis, vão, voltam, trazem um papel, vão, voltam, registam umas coisas, e passam-se horas. Lá vão lamentando que têm um equipamento fabuloso mas que não tem autorização para sair de Díli. Ao longo de todo aquele tempo, 10 timorenses aguardavam por ali perto ansiosíssimos, e pareciam conhecer o desfecho. A Australiana: “Ok, esqueçam, vamos deixá-los tentar”. Cortaram árvores à catanada, ergueram uma estrutura ravina acima por baixo do carro, montaram alavancas, ataram cordas, cavaram buracos. E riram, riram e riram. 1, 2, 3, os malaes (nós) dão uma ajuda, puxa!, e o carro lá volta para a estrada. Bela metáfora para o nosso mundo: de um lado as ‘nações unidas’ e todo o ‘progresso’, a ‘tecnologia’, afundados em burocracia e hierarquias; do outro a sabedoria e a organização populares, que à sua maneira resolvem os problemas. Lá voltámos para Díli, estafados, refrescados, e eu com um ano a mais. Vá que não mude assim muita coisa – só na minha cabeça “22 para 23” soa a bem mais velho. Sei que volto a conhecer gente por Díli e me mandarão a dica recorrente: “Tu tens pinta de ser novinho… Tens aí o quê, 27?” É engraçado só me dar com pessoas mais velhas. Sou dos estrangeiros mais novos a trabalhar em Timor (naturalmente muitos timorense começam a trabalhar duro aos 7 anos). Até sabe bem pensar em resposta “Vês, com 22 e já ando nestas andanças, como tu!”. Sinto que até já fiz e experimentei muita coisa, como qualquer pessoa desta geração que saltita entre biscates e estágios de 3 meses, mas continuo a sentir que viajei pouco – há tanto tanto para conhecer!

Há mais de seis meses aqui, sem saber se alguma vez voltarei a este lado do mundo (embora, ok, severamente desconfiando de que sim), e só me pirei uma vez de Timor, para o cliché turístico da região: Bali, na Indonésia. Um dia, conversa no facebook: “Solero, há quanto tempo!” “Xico!! Acordado a estas horas?” “Tou em Timor pá, e tu, a estas horas?” “Ah, tou em Massamá a fazer a mala, daqui a umas horas vou para a Indonésia”. Poucos dias depois acordava tão constipado quanto excitado e enfiava tudo na mochila. Passei umas horas no trabalho, para parecer bem, e à hora de almoço corri para o aeroporto. Chegado à famosa ilha, depois de uma espera desesperante para o visto, perdido no meio dos triliões de turistas, Franceses, Australianos, Japoneses, que diariamente ali aterram para viverem umas férias tão formatadas quanto o trabalho que interrompem, ouvi “Xico!!”. E ainda bem, porque o Solero estava irreconhecível. Com um belo bronze e um bigode à woodstock… “Há quanto tempo, meu!” Com a sua malta, foram a companhia ideal! Casa e carro alugados, planos traçados e largos sorrisos na cara – só tive de me deixar levar. Fomos até ao centro da ilha, ao vulcão que lhe deu origem e que hoje é um lago enorme e uma enorme montanha: Gunung Agung. Noite a cair e um balinês adorável lança a proposta: “Querem subi-la?” Duas coisas contraditoriamente incontestáveis: 1. era entusiasmante demais a ideia de subir uma montanha durante a noite, de viver aquela 2. não tínhamos material, agasalhos, dinheiro, etc. Deu para dar um jeito na segunda: um preço brutalmente regateado e uma corrida até uma lojinha para comprar ténis usados e camisolas manhosas. Às duas da manhã partimos pela montanha imensa, à conquista de um céu infinito, só nós, o nosso adorável guia e dois franceses por quem passámos, no seu mega uniforme Decathlon – incrédulos com o nosso equipamento. Não sei se acontecerá o mesmo a todas as pessoas que sobem montanhas. Nem sei se se sente o mesmo de todas as vezes que se sobe uma montanha. Mas assim espero!

Os momentos que passei no topo do Gunung Agung, aconchegado num cobertor, vão ficar bem aconchegados na minha memória recebendo bafos quentes do coração. A sensação de nada mais ver à volta, de estar acima de tudo. O sol a surgir como um ovo estrelado. A sombra colossal da montanha a deslizar do lado oposto. O nescafé quente, o mais saboroso que alguma vez bebi. Foi tudo de uma ternura inexplicável. E porque há coisas que simplesmente acontecem, não se explicam, na minha mochila tinha os Vagabundos do Dharma, do Kerouaq, livro que deu a tudo um tremendo sentido. Falando de coisas que acontecem, não se explicam… aconteceu outra com piada. Montes da Senhora é o nome engraçado de uma pequeníssima aldeia da Beira Baixa. Temos lá uma bonita casa de xisto, que passa todo o ano a suspirar por um encontro familiar ou por um louco fim-de-semana juvenil, que muito dificilmente chegam a acontecer. Ora, vir para Timor empurrou-me para bem mais perto dessa aldeia onde o meu pai cresceu. Podia tratar-se aquele fenómeno de dar valor às origens, àquilo que deixámos submerso em saudade, e que faz do tuga de Paris o mais fervoroso dos transmontanos. Mas não, o caso é mais simples – e muito mais estranho. Pergunto eu: qual é a probabilidade de se virem a conhecer num sítio como Díli três jovens cujos pais são amigos de infância, conterrâneos dessa mesma pequeníssima aldeia portuguesa? Uma tarde o meu pai alertou-me pela net para o primeiro encontro: “Está aí a coiso e tal, filha de coiso e tal, a ver se se conhecem”. Horas depois conheci uma amiga de uma amiga, com quem falei durante horas. E não sei por que raio os Montes vieram à conversa, e: “Ah, és tu!”, “Ah! És tu!”. Mais tarde, calhou falar desse episódio a um amigo, com quem me dava quase diariamente desde que ele chegara. Eu: “Bem, ainda estou parvo: eu e ela da mesma aldeia…

NR - Francisco, isto é uma partida da redacção da ânimo!Esperemos que gostes!!!!Para o caso de não saberes, entra aqui!!!!
É que ninguém conhece Montes da Senhora…” Ele: “Espera… tu disseste Montes da Senhora?” E pronto, o gang dos Três dos Montes em Díli estava formado. São duas pessoas maravilhosas, e entretanto receberam a visita dos pais. Estavam mortos por me conhecer e fomos jantar juntos. Troquei os restaurantes indonésios de um dólar por prato por um bom português à beira-mar. Como foi bonito conhecer histórias de uma terra da qual fui perdendo e perdendo o contacto, sem no entanto dela me poder desligar! Do dia-a-dia de então, divertido e miserável. Da minha avó. Deu-me vontade de lá voltar – e o encontro de nós os três nos Montes está assegurado. Bom, um dia. Até lá parece que posso ouvir os suspiros de xisto… Nessa noite encontrei, ou melhor, encontraram-me, primeiro o CEO e depois outro director da Timor Telecom. Os dois jantavam sozinhos e ficaram bem contentes por me darem uma palmadinha nas costas e comentar coisas como “então, também vens aqui”, “ah, este Francisco sempre de bicicleta, cuidado!”. Nessa noite repeti para mim que empresas não podem fazer pessoas felizes, e pensei que não quero acabar velho e rico e obcecado por sucesso e armado em importante e sozinho. As pessoas interessantes são as que não desistem de ir sendo diferentes, de se rebelar e ir fazer algo fora do carreiro. E ao escrever isto lembro-me forçosamente do Jean. Estávamos em Tutuala, na ponta leste da ilha, o sol já tinha caído e os pescadores assavam-nos um belo peixe e batata-doce, quando ele apareceu, com o seu cheiro a suor antigo. Quando nos contou a sua história demorei a acreditar que aquela pessoa pudesse estar ali, naquele mesmo sítio, ao meu lado. O Jean tinha 45 anos quando saiu do Quebec, hoje tem 54. Há 9 anos que percorre o mundo – a pé. Empurra um triciclo com uns bens essenciais e anda, anda, anda. Pela América Latina, África, Europa, agora Ásia, pede hospitalidade às pessoas que encontra. “Então e… porquê? Por que é que resolveste fazer isto?” “Ah, crise de meia-idade.” Não era uma piada. Tinha um emprego banal, nunca saíra do Canadá, não falava senão francês – até perceber que a sua vida não fazia qualquer sentido. E agora ali estava, na fase final (falta um ano e meio para atravessar a Austrália e regressar a casa) de uma aventura que resolveu dedicar à paz e a todas as crianças. Ali estava, a dizer-me: “Gostava de ser uma inspiração por onde passo. Seja uma canção, um grito, um abraço, uma grande aventura… qualquer pessoa pode fazer a diferença”. Dois dias depois fui encontrar-me com ele em Díli. Fui de bicicleta e gravador no bolso. Ele regressara da ponta da ilha à boleia, tinha acabado de chegar a casa de alguém que o acolhia por aquela noite, bem no meio de um populoso bairro da capital. Fomos jantar a um paupérrimo e bonito restaurante ali ao lado, onde por certo há muito tempo não entrava um malae. Não se cansou de falar e eu não poderia cansar-me de o ouvir. Após nove anos a contar a mesmíssima história a toda a gente, estava genuinamente feliz pelo interesse que eu mostrara, e tinha o maior desejo de que eu fosse bem sucedido em encontrar uma revista portuguesa que quisesse aquela história. O respeito, quase contemplativo, com que comecei por falar com ele, emocionado pela sorte de estar a intersectar um projecto tão bonito, cedo deu lugar à descontracção e empatia total, graças à simplicidade quase infantil, a humildade meiga, de alguém que há uma década não faz mais nada do que conhecer as pessoas do mundo. Se sempre vier a publicar a história (ainda não tive tempo para a escrever) digo. Entretanto se quiserem conheçam-no aqui: http://www.wwwalk.org/ Eu recordarei o momento em que leva as mãos ao mar e diz “Feito. Mais um país atravessado”. Tínhamos ido lá para viver dois dias intensíssimos. Na ponta este de Timor, a umas 7 horas de viagem de Díli, esconde-se esse que é um dos sítios mais paradisíacos onde já estive. Ao redor da pequena ilha de Jaco, a cor da água é deslumbrante. Apenas dois metros mar adentro e uns simples óculos de natação permitiam-nos entrar no fantástico mundo das centenas de peixes, das algas, dos corais, de cores vivas e brilhantes. Entretanto fizemos lentamente a longa viagem de regresso, com poucas conversas. O meu rabo doía onde quer que me sentasse e já só queria chegar a casa. No fim da viagem comentávamos entre nós a beleza da ilha e daquele fim-de-semana, para logo depois irmos descansar para as nossas camas, de volta à vida chata de Díli. Podia ter sido assim, mas claro que não. Era a última subida. Logo ali, do outro lado do monte, escondiam-se as luzes de Díli. E foi aí, na última de tantas subidas, que ficámos sem gasolina. Noite cerrada, esperámos até que alguém parasse. Foi um camião. O condutor, feliz e divertido como só um timorense, ligou um cabo ao jipe e nós saltámos para a parte de trás do camião. Sete malaes estoirados e radiantes, a ver as estrelas deslizar por cima de nós, até serem substituídas pelas luzes da cidade – como os duros mas reais raios matinais a despertar do prazer de um sonho, ao começo de mais um deprimente dia de trabalho.

NR- Outro inciso da redacção da ânimo, agora para oficializar o desafio: Venham mais crónicas, do alto das montanhas, da profundeza dos mares, ou das gentes de Timor ! A história de gente sem temor.
Não creiam pois que isto por cá é só grandes histórias, estes e-mails são matreiros. 80% do tempo – demasiado! – continua a ser estar sentadinho e a produzir muito pouco em frente ao computador numa sala com paredes brancas e ar condicionado, com pausas para ir mostrar ao CEO os comunicados de imprensa e os discursos que escrevo por ele, para ir ter reuniões aqui e ali sobre os projectos de responsabilidade social da empresa, para ler e sacar textos da net e cultivar-me enquanto perigoso terrorista de extrema-esquerda, para espreitar o computador do estagiário à minha frente que passa horas descaradas a sacar fotografias de raparigas indonésias do facebook, ou para, neste caso, escrever um textozeco sem parágrafos sobre não sei bem o quê, que no fim copio para a caixa de texto do hotmail – esse e-mail parvo, ratodoporao@hotmail.com, que utilizo para falar com quem quer que seja, nunca tive outro – e ali clico “enviar”, para que o texto corra o mundo…
Francisco Colaço Pedro