1.Aludi, no domingo passado, a “um teólogo feliz”,
mesmo na tormenta, chamado E. Schillebeeckx,
que passou, nas vésperas do Natal, defi nitivamente
para as mãos de Deus. Sob certo aspecto,
é verdade o que diz Fernando Pessoa: “Morrer
é só não ser visto” (1).
Quando isso acontece, o essencial fi ca sempre por dizer.
Apetece-me, no entanto, recolher e partilhar a confi ssão
desse teólogo cem por cento racional, não racionalista, e,
simultaneamente, cem por cento crente. É uma confi ssão,
não é uma argumentação. Essa percorre toda a sua obra.
Aqui e agora, é a primeira que me interessa, respeitando
o seu carácter oral, embora transcrita para a obra citada
no domingo passado.
Enquanto crente, sou racional, procuro argumentos
racionais e sinto-me, assim, um crente cem por cento. Não
há contradição. Ser crente não signifi ca ser irracional. A
fé é a confi ssão de um homem racional. A racionalidade
da fé deve ser sempre desenvolvida e clarifi cada. Toda a
minha teologia é teologia de um crente: Fides quaerens
intellectum. A razão humana deve viver à vontade no domínio
da fé. Apelar para a obediência e fechar os olhos
não é cristão, não é católico. Precisamos de ser crentes
racionais. S. Tomás é santo na sua racionalidade. Usa a
razão para abordar a fé. A racionalidade é cada vez mais
necessária, sobretudo, para reagir contra o fundamentalismo
que também mina, cada vez mais, as Igrejas. O
fundamentalismo, presente em certas comunidades cristãs,
leva ao obscurantismo. É um grande perigo porque
nega a razão humana.
É verdade que a razão humana não pode ser abandonada
a ela própria. Corre o perigo de se fechar num puro
positivismo. A fé cumpre a função crítica e conectiva para
não se cair no racionalismo e para que não se feche ao
mistério. Sem a razão humana, a fé torna-se fundamentalismo.
Ambas, a fé e a razão, cumprem a função de
crítica recíproca.
2. Outrora, falava-se de escolas teológicas. Havia mestres
e discípulos. Hoje, já não é assim. A ideia de fazer
escola está ultrapassada. As grandes sínteses, que duravam
séculos, são coisa que já não existe. Eu não escrevo
para a eternidade, mas para o ser humano de hoje que
se encontra numa situação histórica determinada. Tento
responder a questões. A minha teologia é datada, é
contextual. Deseja, no entanto, ir para além da situação
enquanto tal. Nas minhas obras, existe uma intenção
universal, pois esforço-me por ter em consideração o
porquê dos seres humanos de toda a humanidade. De
outra forma, aliás, não seria boa teologia. A actualidade
de uma teologia não se confunde com uma actualidade
efémera. Para outros tempos, outras teologias virão.
Estou contente de ter dito alguma coisa para o ser humano
de hoje e, talvez, também alguma coisa que interessará,
ainda, a geração futura. Quando uma teologia
pode alimentar a geração seguinte, é uma grande teologia
e assim continua a grande tradição teológica.
3. É difícil traçar uma linha de divisão nítida entre a
minha aventura pessoal e a minha vida de teólogo. Há
dois textos da Escritura que sempre me apoiaram e que,
ainda hoje, continuam a apoiar-me: “Estai sempre prontos
a responder a quem vos pede a razão da esperança que
vos habita” (1 Pedro 3, 15) e “Não apagueis o Espírito. Não
desprezeis as profecias. Examinai tudo, guardai o que é
bom” (1 Ts 5, 19-21).
É o Espírito que me fala através destes textos sagrados.
Por um lado, no esforço contínuo para me reorientar nas
reacções inesperadas, para as quais sopra o Espírito de
Deus; este mesmo Espírito deu, ao meu trabalho teológico,
um carácter de esperança, libertador e construtivo
que abre para a existência concreta, como muitos dos
meus leitores, para minha grande alegria, me fi zeram
saber, verbalmente ou por escrito.
Por outro lado, o Espírito foi também a fonte do inesgotável
carácter crítico dos meus escritos, da atitude crítica
que, até hoje, me acarretou um certo número de cartas
nas quais os meus irmãos cristãos me defi niram como
um “diabo em carne e osso”, “um lobo sob a pele do cordeiro”,
“um herético da pior espécie” e “um imigrado na
Holanda que para o bem da sociedade e da Igreja seria
melhor regressar ao seu país de origem”.
O meu trabalho científi cosignifi ca ainda, para mim,
de modo muito consciente,uma forma de apostolado
e, em particular, uma formade pregação dominicana
da Boa Nova: o Evangelhode Jesus, o Messias do
Deus libertador, eleito doEspírito.
Aprendi, no entanto,por experiência que, se a
religião é o maior bem doser humano e para o ser
humano, é também, muitasvezes, inteiramente manipulada
para humilhar e atépara torturar o ser humano
no corpo e no espírito.É por isso que, sobretudo
nos últimos anos, o meupensamento teológico preferiu
defender o ser humano,homem e mulher, contra
as exigências desumanasda religião, em vez de
a defender contra as nossasilusões de seres pecadores
que todos somos.Nos dois aspectos, crítico
e construtivo, do meu pensamentoteológico, procurei
testemunhar aos outros a esperança e a alegria que
vivem em mim. Sou verdadeiramente um homem feliz.
Em suma, só um ser inteligente pode acolher a fé; só
um homem de fé pode deixar a inteligência, em todos
os seus registos, viver em liberdade a multifacetada experiência
cristã.
(1) Inês de Barros Baptista, Morrer é só não ser visto, Planeta,
Lisboa, 2009
Frei BentoDomingues
O.P.