Segunda-feira, 4 de Maio de 2009
WEBANGELHO

Pe Anselmo Borges
Religiões e extraterrestres
Há um conto célebre no qual o famoso matemático e filósofo ateu Bertrand Russell, Prémio Nobel da Literatura, narra o pesadelo do teólogo.
O teólogo eminente Dr. Thaddeus sonhou que tinha morrido e seguido rumo ao Céu. Bateu à porta e disse que tinha dedicado a vida à glória de Deus. - Homem? - exclamou o porteiro. - O que é isso?
Ninguém, lá em cima, ouvira falar dessa coisa chamada "Homem". Mesmo assim, um bibliotecário, um ser esférico com mil olhos e uma boca, depois de ter ouvido o teólogo explicar que a Terra é parte do Sistema Solar, por sua vez parte da Via Láctea, com milhares de milhões de estrelas e uma galáxia entre milhares de milhões, mandou chamar um dos sub-bibliotecários, especializado em galáxias.
Umas três semanas depois, com o trabalho de cinco mil empregados, o sub-bibliotecário voltou e explicou que o ficheiro extraordinariamente eficiente da secção galáctica da biblioteca lhe tinha permitido localizar a galáxia pretendida.
Mas era preciso agora procurar uma estrela - o Sol -, uma entre trezentos mil milhões dentro da galáxia. Alguns anos mais tarde foi um tetraedro arrasado de cansaço que compareceu, dizendo que tinha finalmente descoberto essa estrela especial, mas não vendo grande interesse nisso. De qualquer forma, ela está cercada por corpos muito pequenos chamados "planetas", havendo nalguns deles "parasitas" e "essa coisa que tem estado a fazer perguntas deve ser um deles".
Então, o Dr. Thaddeus desatou num indignado lamento: - "Porque é que o Criador escondeu de nós que não fomos nós que O levámos a criar os céus? Servi-O diligentemente toda a minha vida. E agora até parece que nem sequer sabe da minha existência. Não posso aguentar isto. Não posso mais adorar o meu Criador. - Muito bem - retorquiu o porteiro. Então, pode ir para o Outro Lugar".
"Aqui, o teólogo acordou. E murmurou: - O poder de Satanás sobre a nossa imaginação adormecida é terrível".
Estaremos sós neste Universo estonteantemente gigantesco? Aí está uma pergunta que muitos farão, concretamente neste Ano Internacional da Astronomia.
No ano passado, o padre José Gabriel Funes, director do Observatório Astronómico do Vaticano, declarou, desencadeando imensa curiosidade: "Como há uma multidão de criaturas sobre a Terra, poderia haver outros seres, mesmo seres inteligentes, criados por Deus. Isso não contradiz a nossa fé, pois não podemos colocar limites à liberdade criadora de Deus". Poderíamos então falar do "nosso irmão extraterrestre". Aliás, o seu predecessor, padre George Coyne, já se tinha pronunciado no mesmo sentido, ao dizer que o universo é feito para fabricar vida, portanto, a existência de outros seres não põe problemas à fé: "É um desafio salutar que a engrandece em vez de encerrá-la".
A revista Le Monde des Religions (Set.-Out. 2008) foi à procura das posições de outras religiões.
O talmudista Hervé Bokobza diz que "as narrativas da literatura midráshica demonstram que, se eventuais descobertas científicas revelassem a presença de outros seres vivos no universo, os princípios da Tora e os valores do judaísmo não seriam abalados".
O islão vai mais longe, "predizendo" não só a existência de vida extraterrestre mas também que haverá um encontro: "Entre as Suas Provas está a criação dos céus e da terra e dos seres vivos que aí disseminou. Tem aliás o poder de reuni-los quando lhe aprouver" (sura 42). "Alá que criou sete céus e outras tantas terras" (sura 65).
Também a resposta do budismo é afirmativa. O budismo Mahayana tem sutras que estendem o ensinamento do Buda "a todos os mundos". No sutra da Contemplação da vida infinita, Buda faz jorrar da sua fronte um raio de luz "que iluminou todos os mundos e voltou a colocar-se na cabeça do Buda, formando uma torre de luz. Nesta torre, podia ver-se todas as terras dos budas".
Após a detecção de "super-Terras", a procura de vida noutras paragens tornou-se objecto de investigação científica. Se alguma vez se der o encontro, será um acontecimento maior da História.
Padre e professor de Filosofia
In Diário de Notícias, 2 Maio 2009)
WEBANGELHO
O herói e o santo
Frei Bento Domingues O.P.
(In Público de 3 Maio 2009)
A canonização celebra a viragem radical na vida de Nuno Álvares Pereira, não a consagração do herói da nossa identidade
1.Ninguém se pode queixar da falta de notícias sobre a canonização de Nuno de Santa Maria, embora não isentas de ambiguidades. Nem tudo o que é atribuído ao Condestável é incontestável. Existem várias formas de encarar essa grande figura da História de Portugal. Hoje, numa sociedade de separação entre Igreja e Estado, deve-se deixar ao Estado o que ao Estado pertence: preservar e realçar a memória dos seus heróis. À Igreja compete recuperar a memória dos seus santos, não a dos heróis nacionais. No caso de Nuno Álvares Pereira, quem terá sido canonizado? O herói, pelas suas escolhas políticas e os seus feitos bélicos, ou o santo, aquele que abandonou o poder militar e a riqueza para se dedicar, no despojamento, à contemplação e ao serviço dos pobres? Os que dizem que não é possível separar o herói do santo nem o santo do herói - embora tenha sido a tonalidade de algumas intervenções eclesiásticas e políticas - esquecem que, sem atender a essa diferença, seria desaconselhável a canonização. Ela celebra a viragem radical na vida de Nuno Álvares Pereira, não a consagração do herói da nossa identidade. A heroicidade das virtudes requeridas para a canonização não é a heroicidade que se requer no combate aos inimigos da independência de Portugal. Não me parece que o hino nacional - "contra os canhões, marchar, marchar..." - possa ser o escolhido para a liturgia da festa de S. Nuno.
Digo isto porque todos os discursos sobre ele podem ter as suas derrapagens. O cardeal José Saraiva Martins - especializado a desencalhar canonizações - não se mostrou muito inspirado ao exemplificar a espiritualidade mariana de S. Nuno: "Antes e durante as batalhas, ajoelhava e rezava a Nossa Senhora. Isto é muito significativo, muito importante, era um militar e fazer isso supõe um grande acto de heroísmo." É certo que o cardeal poderá argumentar que também na Bíblia se pede a Deus ajuda para derrotar os inimigos, constituído chefe do exército do povo eleito.
Essas partes das Escrituras só deixarão de ser lamentáveis, se as considerarmos inspiradas a dizer, de forma brutal, o que nunca deve ser feito: confundir os nossos interesses tribais ou nacionais com a vontade de Deus. Se uma das jóias da nossa arquitectura celebra Nossa Senhora das Vitórias, mais conhecida como Mosteiro da Batalha, só indica a contaminação da devoção católica por essa aberração ancestral. Será que Nossa Senhora, aborrecida com os castelhanos, se vingou deles revelando ao Condestável português a forma de os derrotar? Tomás de Aquino aconselhava os teólogos e os apologistas a terem cuidado com o ridículo.
2.Se esta canonização fosse para exaltar a capacidade guerreira do Condestável, teria de se fazer um processo religioso à sua forma de combater. Mesmo que alguns discursos dêem isso como pressuposto, talvez estejam enganados. Dir-se-á que é preciso cuidado com os anacronismos. Sem dúvida, mas não é de nenhum anacronismo que se trata: não terá sido no nosso tempo que o ataque às Torres Gémeas e a guerra ao Iraque se apresentaram com motivações político-religiosas? Não seria um bom milagre de S. Nuno se levasse os políticos e os militares de hoje a deixar a guerra - abrindo a mente e o coração ao imenso mistério da vida e da morte - e a distribuir os seus gastos em beneficio das vítimas inocentes da crise actual?
Diz-se que em qualquer situação é possível santificar-se. Talvez seja preferível santificar-se a fazer a paz do que a fazer a guerra.
3.É louvável recuperar antigas memórias portuguesas de santidade, embora, às vezes, possa levar a pensar que santos são apenas os canonizados. Repetiu-se que S. Nuno era o oitavo santo português! Há várias figuras exemplares da nossa história recente que devem ser lembradas. Destaco apenas três: o padre Abel Varzim (1902-1964), imagem do catolicismo social português durante o regime de Salazar, que o procurou domesticar e acabou por perseguir, sem encontrar na Igreja a defesa de quem o devia proteger; o Padre Américo (1887-1956), que, como dizia, depois de "uma martelada" espiritual, se tornou o padre da rua dos abandonados, dando-lhes voz, no espantoso jornal O Gaiato; Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), que salvou, enquanto cônsul em Bordéus, a vida a dezenas de milhares de pessoas do Holocausto, desobedecendo, em nome da sua consciência humana e católica, às ordens de Salazar, que o entregou à miséria, a ele e à família.
Tenho, na minha frente, uma entrevista a Isabel Jonet, católica, presidente do Banco Alimentar contra a Fome - dá de comer a 245 mil pessoas por dia -, congrega uma multidão de voluntários na luta prática contra a pobreza. Ao ajudar a perceber que não vale a pena andar fascinado por bens que nada acrescentam à vida verdadeira, tornou-se também uma discreta escola de espiritualidade. Em vez de perder o tempo a enumerar tudo o que, em Portugal, corre mal, descobre e desperta vocações para a prática da solidariedade inadiável.
No seio do absurdo, os santos são aqueles que se convertem, rasgando a opacidade do Céu e a indiferença perante a miséria. São a face luminosa da fé.