Pe Anselmo Borges
In DN
A PESSOA: SER EM TENSÃO
Já não é sustentável uma concepção dualista do ser humano, à maneira de Platão ou Descartes: composto de alma e corpo, matéria e espírito. O homem é uma realidade unitária, para lá do dualismo e do materialismo. O jesuíta J. Mahoney, que já foi membro da Comissão Teológica Internacional, escreveu de modo feliz: "Não se deve considerar a alma humana, constitutiva da pessoa, como se fosse um espírito puro infundido a partir de fora num receptáculo biológico no instante da concepção, mas referir-se a ela mais apropriadamente entendendo-a como um brotar ou emergir a partir do interior do próprio material biológico dado pelos progenitores, genuínos originantes pela sua parte, sem necessidade de ter de recorrer a uma intervenção divina quase milagrosa, para a produção de uma nova realidade. Portanto, a afinidade que existe entre matéria e espírito permite-nos, e inclusivamente exige-nos, considerar o emergir da nova pessoa humana como um processo que leva tempo e requer um certo período de existência pré-pessoal como o umbral através do qual se dá a passagem a uma existência animada no sentido pleno da palavra."
A própria Bíblia tem uma concepção unitária da pessoa. Por isso, não se crê na imortalidade da alma, mas na ressurreição dos mortos, não no sentido da reanimação do cadáver, mas da plenitude da existência da pessoa toda em Deus.
Mas, se a constituição do homem é a de um ser unitário, também é fundamental entender que é um ser em tensão. Habituados a pensá-lo como "animal racional", rapidamente esquecemos a animalidade, para ficarmos apenas com a razão abstracta. Escreveu Hegel: "O que é racional é real e o que é real é racional." Mas vários filósofos, como Nietzsche, Freud, Ernst Bloch, chamaram a atenção para o facto de a razão, o logos puro, não explicar o processo do mundo: na raiz do mundo está um intensivo da ordem do querer. Quem mais sublinhou isso foi Schopenhauer: há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da razão: o impulso, a "vontade". Portanto, no ser humano, há o impulso e a razão, a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a emoção e o cálculo. O próprio cérebro, que forma um todo holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da afectividade, e o córtex com o neocórtex, em conexão com as capacidades lógicas.
A luz racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano inconsciente e também tenebroso. Por isso, nem sempre conseguimos viver em harmonia e é preciso estar de sobreaviso para não se cair em catástrofes mortais, também porque as respostas emocionais podem escapar ao controlo racional, por causa do chamado "atalho neuronal" e do "sequestro emocional": as informações são lidas pelo cérebro emocional e só depois pelo racional. Quem nunca fez a experiência de deitar as mãos à cabeça: "Como foi possível eu ter feito isso!.. Aí, não era eu." Sem emoção, o que seria a vida, na relação com os outros, na própria ética, no que à música se refere? Mas não se pode esquecer a razão. O ser humano é rácio-emocional.
Para lá desta, há muitas outras tensões. Vimos da natureza, somos natureza, mas contrapomo-nos à natureza, é em nós que a evolução toma consciência de si: somos da natureza e na natureza e nem sempre a pessoa consegue integrar a natureza. Vivemos no presente, sempre no presente, mas vimos do passado, voltados para o futuro; se perdêssemos a memória, não perderíamos apenas o passado, mas a identidade, já não saberíamos quem somos; e estamos sempre voltados para o futuro, é ele que nos alenta pela esperança. Já somos, mas ainda não somos o que havemos de ser. Somos finitos, mas estamos constitutivamente abertos ao Infinito e perguntamos ao Infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. Sabemos que sabemos e sobretudo sabemos que não sabemos e, por isso, perguntamos ilimitadamente; daí, vivermos no desassossego, inquietos. Somos limitados, mas a condição de possibilidade de darmos conta do limite é o ilimitado, de tal modo que, indo ao fora de nós, ao que há e ao que não há, ao real e ao possível e ao impossível, ao ser, vimos a nós numa intimidade única. Estamos em nós e no outro de nós: dentro e fora de nós. E desdobramo-nos, reflectindo, de tal modo que, vendo-nos como sujeito que se objectiva, tomamos consciência da nossa identidade. Ah, e o outro! Vamos ao encontro do outro, mas do outro que é outro como eu, mas sobretudo um eu que não sou eu: um outro eu e um eu outro. E lá está o encontro, feito de alegria, de fascínio, mas também o desencontro da ameaça e do possível conflito.
Saber e sabedoria têm o mesmo étimo: sapere, relacionado com sabor. Para viver, não basta o saber, que é sobretudo teórico, racional. A sabedoria de viver implica a consciência das tensões e conviver sabiamente com elas.
Quem procura entrar na Europa encontra muros e mares de sepultura.
1. Alguns leitores reagindo ao meu texto do domingo passado, disseram-me: se o panorama da família em desconstrução e reconstrução é tão caótico, como poderão as famílias agrupar-se para evangelizar, encher de alegria, antigos e novos projectos familiares?
Podem. Com diferentes configurações, existem, por todo o mundo, milhões de famílias que o amor reuniu - de avós a netos - que sem alarido, já vivem antigos e novos processos de alimentar e renovar a esperança das futuras gerações. Por outro lado, a graça do Evangelho não contraria os trabalhos escondidos da natureza e da cultura, como certa apologética pouco católica, ignorante e sectária, insiste em proclamar.
Dito isto, para evangelizar a família importa não esquecer o contencioso agreste de Jesus com a sua família e com as famílias dos seus discípulos. Tão agreste que os seus familiares o quiseram deter, julgando que ele estava doido. Quem o diz é S. Marcos, ao descrever o entusiasmo que a sua intervenção estava a suscitar: "Voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, a ponto de não se poderem alimentar. Logo que os seus tomaram conhecimento disso, saíram para o deter, dizendo: enlouqueceu [1]". S. João descreve uma cena familiar de ciúmes, crueldade, troça e desprezo, precisamente quando Jesus mais precisava de compreensão, porque nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele [2].
Esse contencioso é ignorado na catequese e na pregação porque não quadra com a iconografia da exemplar família de Nazaré! No entanto, é o desentendimento no seio da Sagrada Família que revela, da forma mais abrangente e radical, a essência do cristianismo: fazer família com quem não é da família, esperança activa e horizonte da humanidade, sempre a retomar, nos mais diversos estilos, tempos e lugares.
Por isso, é ridículo dizer que Jesus era contra a família. Pelo contrário. Repito e voltarei a repetir: vivia e interpretava a sua missão como a loucura de fazer família com quem não era da família. O que ele combatia era a família como central de egoísmo, a família fechada sobre si mesma que não se preocupa com os de fora.
Era precisamente esse egoísmo que impedia a sua família e a dos discípulos de entender o caminho desta estranha criatura: "Chegaram, então, a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: a tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele perguntou: quem é minha mãe e meus irmãos? Percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor disse: eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe." [3]
No Evangelho de S. Mateus a questão da revolução na família alarga-se: «Quanto a vós, não permitais que vos chamem Rabi, pois um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos. A ninguém na terra chameis Pai, pois um só é o vosso Pai, o celeste». [4]
2. É evidente que Jesus não estava a ditar um catecismo de pastoral familiar nem a desautorizar as chamadas famílias biológicas e as suas múltiplas configurações culturais. [5] Estava a semear algo de muito mais importante e para sempre: fazer da vida em família, o tempo e o lugar da descoberta do mundo como família. Ao aprofundar e estreitar os laços internos, construindo a igreja doméstica, tudo seria orientado para redes de igrejas em saída, para usar a linguagem do Papa Francisco.
Dir-se-á que esse é o caminho dos sonhos. Os sonhos são antecipações do futuro e o futuro é a união na diferença.
Esta expressão está ameaçada. A UE em vez de trabalhar pela união dos países desenvolveu um sistema no qual os grandes comem os pequenos e ainda querem passar por benfeitores. As fronteiras foram abolidas, mas não as fronteiras económicas. Os pequenos enriquecem os grandes que ainda passam por preguiçosos. Quem procura entrar na Europa encontra muros e mares de sepultura. Perante os migrantes, quem pensará que se trata de gente da nossa família humana? E as chamadas famílias cristãs terão olhos, inteligência e coração verdadeiramente cristãos para alterar as políticas que vêem nos pobres uma ameaça?
A morte: o último tabu
In DN 31Out
Sobre os dias 1 e 2 de Novembro, dias dos mortos e da pergunta essencial.
1- É bem possível que, para se perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e se trata a morte. Facto é que as nossas sociedades desenvolvidas, tecnocientíficas, do primado do ter sobre o ser, da eficácia, da vertigem do poder, do tempo digital e da aceleração, são as primeiras na história a fazer da morte tabu. Mais: assentam a sua realidade no tabu; para serem o que são, têm de fazer da morte tabu.
2-O que se passou? Nos princípios do século XX, o filósofo Max Scheler, reflectindo sobre o recalcamento da morte na sociedade europeia, foi encontrá-lo na modernidade, quando se deu uma estrutura diferente de experiência, centrada nos impulsos do trabalho, do domínio e do lucro. O homem moderno já não frui de Deus e a própria natureza já não é a terra natal acolhedora, que provoca admiração e espanto, mas tão-só o espaço da possibilidade de manifestação da subjectividade dominadora, como diz o soberano "penso, logo existo" de Descartes. Desde então, tudo fica sujeito ao cálculo, ao útil, ao funcional. Ora, se tudo é submetido ao útil e mecânico, orientado para o poder e ter sempre mais, já não há lugar para os outros valores. Num mundo matematizado e calculável, em que "é real o que é calculável", o homem moderno, centrado no activismo, pretendeu superar a angústia da morte através do domínio sem limites, de tal modo que o que fica é o progresso ilimitado, sem finalidade nem sentido humanos. O progresso, em que o progredir pelo progredir é o seu próprio sentido, transformou-se no substituto da vida eterna. Este homem, mediante os impulsos do trabalho, do lucro e do prazer sem limites, fica narcotizado quanto ao pensamento da morte. Na agitação constante, que tem em si mesma a sua finalidade e que se concentra no divertissement pascaliano, o homem moderno europeu julgou encontrar o remédio para a ideia da morte. Mas esse remédio é ilusório, pois, agora, a morte, em vez de aparecer como "o preenchimento necessário de um sentido vital", é poder e brutalidade sem sentido. O homem tradicional vivia face à morte com certa naturalidade e até familiaridade. O homem moderno, ao contrário, como vive como se não tivesse de morrer, como já não sabe "que tem de morrer a sua própria morte", quando esta aparece, só lhe pode aparecer como uma catástrofe. Vive no dia-a-dia, até que, subitamente, já não há mais um novo dia.
3- Este nosso universo tem 13 700 milhões de anos. Quase 14 000 milhões de anos! Tanto foi o tempo que demorou o processo até chegar a um existente que não só sabe mas sabe que sabe e sobretudo sabe que não sabe ilimitadamente e, por isso, pergunta. Um animal que é racional, falante, simbolizante, artista, moral... sepultante. Neste gigantesco processo da evolução, o aparecimento dos primeiros túmulos e dos rituais funerários é o sinal característico e decisivo da presença do ser humano no mundo. Pela primeira vez, está no tempo alguém que é consciência do tempo, portanto, da inevitabilidade de morrer e que simultaneamente recusa a aniquilação definitiva. É a consciência da morte que revela a emergência do radicalmente novo, a passagem do pré-humano ao humano, de "algo" a "alguém".
4- A morte é impensável em si mesma. Quando pensamos nela, é sempre no abismo do impensável que mergulhamos. Só por ilusão de linguagem é que dizemos, diante do cadáver do pai, da mãe, da mulher, do amigo: ele (ela) está aqui morto (morta). Na realidade, ele ou ela não está ali: o que falta é precisamente ele ou ela. E ninguém leva o pai ou a mãe, o filho, o amigo, à "última morada", para enterrá-los ou cremá-los. Como não tem sentido dizer que eles estão no cemitério e que vamos lá visitá-los. Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. Então, porque é que a sua violação é uma profanação execranda? O que há verdadeiramente nos cemitérios? Naquele espaço sagrado, do silêncio recolhido, está, paradoxalmente, a fonte da linguagem enquanto espaço da abertura e da pergunta. O que há nos cemitérios é um infinito ponto de interrogação: "O que é o homem?" A morte e o seu pensamento abrem a condição humana ao desconhecido, à Transcendência inominável, que apela e que invocamos.
5- Com o tabu da morte apagaram-se as perguntas últimas e primeiras, metafísicas, e também a ética e a moral. Porque é a consciência do limite na morte que derruba as vaidades, que obriga a perguntar ilimitadamente e nos dá a distinção do justo e do injusto, do que verdadeiramente vale e do que não vale, da "existência autêntica" e da "existência inautêntica" (Heidegger). Percebe-se então que as nossas sociedades, da banalidade rasante, niilistas, tenham feito da morte tabu, o último tabu. Agora, vale tudo, porque nada vale. E é o espectáculo que se sabe e se vê!
IN MEMORIAM ENG JOSÉ BIOUCAS
O Facebook transforma-se nestas ocasiões no grande desassossegador das almas.
Estás tu aqui a fazer tempo para mais uma entrevista na EPM-Montijo e, Zás, tropeças na notícia que o meu amigo Zé Jorge aqui partilha!
Meu caro Presidente Bioucas sabe o privilégio que tive em trabalhar consigo e o privilégio outro de o ter convocado para trabalhar comigo e todos os que lutamos pelo aparecimento das então chamadas rádios locais/livres....
A coragem que demonstrou no apoio que então nos deu aqui fica neste emocionado OBRIGADO que lhe deixo!
Até sempre, meu querido AMIGO!
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Neste link a última conversa que tive o privilégio de manter com o meu querido amigo eng Bioucas.
Queria voltar a convocá-lo, como que invocado a sua sempre paternal presença para um novo baptismo, o das redes sociais.
Uma conversa algo magoada face ao esquecimento de que foi vítima por parte de uma rádio que se diz herdeira daquela rádio outra por que tanto se bateu aquando das "comemorações" de um aniversário deslocado no tempo.
Enfim, meu caro, agora, creio, já vive na terra dos justos e onde o manto da eternidade tudo redime!
Obrigado, outra vez, por ter confiado em mim.
Um abraço solidário a toda a família.
antónio colaço
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