Foto Rui Gaudêncio
Anselmo Borges:Deus não é objecto de experimentação científica"
DEUS ESTÁ NO CÉREBRO?
As neurociências são o grande continente para
o século XXI. Nisto acredita Anselmo Borges, padre
e professor de Filosofi a da Universidade de Coimbra
Maria João Lopes
Chegou à hora combinada a Coimbra. Tudo correu conforme o
previsto. Partiu do Porto, o carro andou, não teve nenhuma avaria,
ninguém se atravessou no caminho. Ao realçar que tudo aconteceu
como acreditámos que aconteceria, o que o sacerdote da Igreja
Católica e professor de Filosofi a da Universidade de Coimbra Anselmo
Borges nos queria dizer era que, ao contrário do que possamos pensar,
a maior parte da nossa vida passa-se no domínio da fé e não da razão.
Fé, que vem de fide, tem que ver com conf ar e acreditar. E é aí que
passamos a maior parte do dia. Claro que o carro podia ter
avariado, mil e uma coisas podiam ter acontecido. A realidade é
ambígua e, nesse caso, se não a considerássemos merecedora de
confi ança, entraria em campo a razão. Mas desta vez não foi
preciso. Fiámo-nos que o encontro iria acontecer e aconteceu, sem
alvoroços. Falámos com Anselmo Borges sobre ciência e religião,
sobre ateus e crentes. Aproveitámos a boleia de uma conferência sobre
“Fundamentalismos e intolerâncias da razão e da fé” e, no fim da sessão,
colocámos-lhe questões que ainda se prolongaram por e-mails. E
poderiam prolongar-se mais. É, que apesar dos tempos, há perguntas
que se mantêm. Uma delas é a questão entre Deus e ciência.
Ainda é pertinente? Para Anselmo Borges, sim. “Para
evitar o fundamentalismo tanto científico como religioso. Quando
a ciência pretende que tem o monopólio da racionalidade,
como se fosse a única via de conhecimento verdadeiro, cai no
fundamentalismo cientificista”, explica. Porque não é só a ciência
que tem a razão, ou razões, diz. A fé também tem: “Diria que a razão
para acreditar é fundamentalmente uma razão do sentido enquanto
sentido de todos os sentidos, isto é, do Sentido último”, diz por
e-mail, reconhecendo também existir fundamentalismo do lado da
religião, quando esta “não respeita a esfera própria da ciência e a sua
autonomia ou faz uma leitura literal dos livros sagrados”, como a Bíblia.
Mas há questões novas, deste tempo, no campo das neurociências, “o grande
continente para o século XXI”: “Hoje, por causa dos novos métodos,
como a ressonância magnética nuclear funcional,
que nos permitem observar o que se
passa no cérebro, concretamente as zonas activadas em presença das
diferentes emoções e actividades, surge a tentação do reducionismo,
no sentido de se defender que os acontecimentos espirituais não
passam de processos físicos e químicos no cérebro”, diz. Para
o docente, é “uma conclusão apressada, pois está-se a esquecer
que a realidade humana envolve biologia e cultura” e “a dimensão
cultural precisa de interpretação, para a qual não há métodos
científico-naturais”.
O ponto de Deus
Anselmo Borges sabe que há neurocientistas que se propõem
encontrar “o ponto de Deus” no cérebro e que alguns destes
estudiosos defendem que “a religião não é mais do que um produto do
cérebro, um artefacto do cérebro”. Mas aqui o padre cita o cientista
americano Andrew Newberg, que “popularizou a chamada
‘neuroteologia’”: “Ele diz mais ou menos o seguinte: se observo o
cérebro de uma monja franciscana que vive a experiência da presença
de Deus, vejo o que se passa no cérebro, mas não posso dizer se
Deus está lá e se existe ou não. Deus não é objecto de experimentação
científica”, defende o docente, que considera não haver conflito entre a
Igreja e os avanços científicos. Então, em que acreditar? No Big
Bang? Na teoria da evolução das espécies? No Génesis? Em Adão e
Eva? Para Anselmo Borges, pode acreditar-se tanto nas teorias científicas
como nas religiosas. A ciência explica-lhe o como, a
religião o porquê. Claro que, no quadro da ciência actual, aceito o
Big Bang e a teoria da evolução. Também aceito, mas numa leitura crítica,
o mito do Génesis e de Adão e Eva. Repare: numa leitura crítica. É preciso
entender que os livros sagrados não são livros de ciência, mas livros
religiosos”, nota, acrescentando que a intenção destas obras não é
ensinar ciência, mas o caminho da “relação com Deus”.
A ciência explica “como funciona o mundo”, mas o padre continua
a sentir-se insatisfeito. Há mais para perceber. “A ciência não pode
responder às perguntas: por que há algo e não nada? Qual o sentido
último da minha vida, da história e do mundo?”, questiona. E é aqui
que pode “aparecer a religião”, que “não pode ser cega nem irracional e
tem de dar razões”. Porque “a revelação não cai do
céu”. Nem Deus “faz ditados, nem fala directamente com ninguém”:
“A revelação de Deus é sempre indirecta, através do cosmos e da
história”, defende. E a fé, “uma entrega confiante ao mistério de
Deus, com razões”, “não exclui a dúvida”.
Anselmo Borges até está “de acordo” com o filósofo ateu André
Comte-Sponville, para quem um ateu que diz saber que Deus
não existe, “antes de ateu, é um imbecil, como é igualmente imbecil
o crente” que diz saber que Deus existe. “O ateu só pode dizer, e tem
razões para isso, que crê que Deus não existe, como o crente só pode
dizer, e tem razões para isso, que crê que Deus existe”, defende o
padre. E sublinha a diferença entre saber e crer.
In Público, P2,Sábado 19 Junho 2010.
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