Frei Bento Domingues
In Público, 27 Junho
“A ciência põe em evidência três dimensões que apontam para Deus”
Uma confiante peregrinação da razão
Os editores da Economist publicaram, no ano
passado, um livro volumoso sobre política e
religião na batalha pela modernidade – já traduzido
em português – O Regresso de Deus, com
um subtítulo apelativo: Como o regresso da fé
está a mudar o mundo (1).
Acerca desse regresso uns dirão que ainda bem, dirão
outros que é uma desgraça. Deixo isso para outra altura,
porque a própria noção de regresso da fé é confusa.
Por onde andava ela? De qualquer forma, não sei se vale
a pena ligar muito a estes títulos bombásticos. Ainda
há bem poucos anos, com algumas obras de Michel
Onfray, Richard Dawkins, Cristopher Hitchens, etc.,
parecia que iríamos ser submergidos por uma onda
de ateísmo “científico” que, afinal, se contentou em
passear de autocarro por alguns países. Irritou-se, no
entanto, com a chamada conversão de
Anthony Flew
(1923-2010), um filósofo britânico, conhecido e respeitado,
durante várias décadas, pelo seu pensamento
ateísta, embora se considerasse um “ateu negativo”,
ao declarar que “proposições teológicas não podem
ser verificadas ou falsificadas pela experiência”. Apresentou
esta posição, em 1950, no seu clássico artigo
Theology and Falsification (Teologia e Falsifi cação),
tido como uma das referências filosóficas mais citadas
da segunda metade do século XX. Para ele, qualquer
debate fi losófi co sobre Deus pressupunha o ateísmo e
o ónus da prova de que Deus existe fi cava a cargo de
quem afi rmava a sua existência.
2.Na narrativa da sua conversão, Deus não existe,
explicou: “Não estava a apresentar uma
tese geral acerca de toda a crença religiosa
ou acerca de toda a linguagem religiosa. Não
pretendia dizer que os enunciados religiosos
eram destituídos de sentido. Eu simplesmente desafiei
os crentes a explicarem como devem ser entendidas as
suas afi rmações, especialmente quando defronte de informação
contraditória” (2).
Antony Flew [na foto], de facto, não parou no seu
“ateísmo negativo”. A partir de 2004, confessa: “Hoje,
acredito que o universo foi criado por uma Inteligência
infi nita. Acredito que as intricadas leis deste universo
manifestam aquilo que os cientistas chamaram a Mente
de Deus. Acredito que a vida e os processos reprodutivos
têm origem numa fonte Divina.
“Por que razão acredito nisto, eu que professei e defendi
o ateísmo por mais de meio século? A versão curta
da resposta é a seguinte: porque é esta, segundo penso,
a imagem do mundo que emergiu da ciência moderna.
A ciência põe em evidência três dimensões que apontam
para Deus. A primeira é o facto de a natureza obedecer
a leis. A segunda é a dimensão da vida, de seres inteligentemente
organizados e movidos por propósitos, que
surgiu da matéria. A terceira é a própria existência da
natureza. Mas não foi apenas a ciência que me guiou.
Também fui ajudado por um estudo renovado dos argumentos
filosóficos clássicos.
“O meu abandono do ateísmo não foi provocado por
qualquer fenómeno ou argumento novos. Ao longo das
duas últimas décadas, toda a minha estrutura de pensamento
tem estado em migração; e isto é consequência
da minha constante avaliação dos dados provindos da
natureza. Quando finalmente acabei por reconhecer a
existência de Deus, não se tratou de uma alteração de
paradigma, porque o meu paradigma permanece – aquele
que Platão atribuiu a Sócrates: Temos de seguir a razão
para onde quer que ela nos leve” (pp. 83-84).
3.Quando se refere às leis da natureza como pensamentos
da mente de Deus, cita Stephen Hawking
que terminara o seu best-seller, Uma Breve
História do Tempo, com esta passagem: “Todavia,
se descobrirmos uma teoria complexa, esta
deve acabar por ser compreendida não apenas por um
punhado de cientistas. Poderemos, então, todos, filósofos,
cientistas e pessoas comuns, tomar parte na discussão do
porquê da nossa existência e da do universo. Se descobrirmos
a resposta, será o triunfo máximo da razão humana,
porque nessa altura conheceremos a mente de Deus.”
Antony Flew refere que, na página anterior, Hawking
tinha perguntado: “Mesmo que haja apenas uma teoria
unificada possível, ela não passará de um conjunto de
normas e de equações. O que é que dá vida às equações e
forma o universo que elas descrevem?” Depois, foi ainda
mais longe: “A impressão esmagadora é a da existência
de uma ordem. Quanto mais sabemos sobre o universo,
mais percebemos que é governado por leis racionais.
(...) Continuamos a ter pela
frente a questão: por que
é que o universo se dá ao
trabalho de existir? Se quisermos,
podemos definir
Deus como a resposta a esta
pergunta.” Muito antes,
já Einstein tinha usado uma
linguagem semelhante (pp.
90-91).
O filósofo inglês sabia que a ciência, enquanto tal,
não pode provar ou negar a existência de Deus. A sua
descoberta do Divino não resultou de experiências
científicas ou de equações, mas de uma compreensão das
estruturas que elas revelam e mapeiam: “Volto a dizer
que a viagem da minha descoberta do Divino foi até aqui
uma peregrinação da razão. Segui a razão até onde ela
me levou. E ela levou-me a aceitar a existência de um
Ser auto-existente, imutável, imaterial, omnipotente e
omnisciente” (p.133).
Esta antologia mínima não dispensa a leitura integral
de Deus não existe.
(1) John Micklethwait/Adrian Wooldridge, O Regresso de Deus,
Quetzal, Lisboa, 2010.
(2) Anthony Flew com Roy Abraham Varghese
NR
Sublinhados nossos.
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