In Público de 24 Out
As crises: grandes oportunidades
Sempre ouvi falar da crise da Igreja, do cristianismo, da religião e até da “morte de Deus”, sem ressurreição
A palavra crise é de origem grega. Transitou do
campo médico para o económico e fi nanceiro.
Não me compete entrar na vozearia acerca das
expressões da crise que nos envolve. Anoto
apenas o seguinte: com todo esse barulho,
ocultam-se os labirintos da crise mundial, o veneno
subtil do império da fi nança e os actores que o servem.
O culto do dinheiro é enganador. Quando de meio necessário
se transforma no fi m e no sentido de tudo,
acaba por fazer do mundo um mercado. Não se pode
servir o dinheiro e o ser humano.
Para além das responsabilidades da banca, das empresas,
do Estado e dos Governos na crise que nos atinge,
não se pode fazer de conta que os indivíduos e as
famílias não são responsáveis pelo modo como usam o
seu poder de compra, como se comportam perante as
despesas necessárias, as de ostentação e as que devem
ser reservadas para o dom e a partilha. Se a crise servir
para hierarquizar o que é mais e menos importante na
vida, pode ser uma excelente ocasião de transformar a
necessidade em virtude.
2.Desde que me lembro, sempre ouvi falar da
crise da Igreja, do cristianismo, da religião
e até da “morte de Deus”, sem ressurreição.
Quando se discutia se tínhamos ou não entrado
numa era pós-cristã, veio a crise das
Missões, que tinham sido a revitalização das Igrejas cristãs
no século XIX. Em África, à medida das independências,
os missionários eram convidados a regressar à
evangelização da Europa, que bem precisava deles. No
campo protestante, falou-se muito de uma “moratória
missionária”. Em certos ambientes católicos, em vez de
missão, chegou-se a usar o termo demissão. Entrávamos,
portanto, numa era pós-missionária.
Foi, sem dúvida, o fi m de um determinado tipo de missões,
mas surgiu o entusiasmo pela inculturação missionária,
mesmo quando não se sabia muito bem o que esse
neologismo eclesiástico poderia implicar. A verdade é que
passou a ter um sentido universal, antigo e moderno, e
não apenas um uso de exportação para o Terceiro Mundo:
só pode ser salvo o que for assumido. João Paulo II lançou o
apelo a uma “Nova Evangelização” em perspectiva global,
provocando as Igrejas locais a responder a essa interpelação.
Se outro mérito não tivesse, conseguiu, pelo menos,
que a questão missionária começasse a ser encarada como
imperativo de todas as comunidades cristãs.
As crises podem redundar em novas oportunidades (1).
Em 1906, um publicista católico, Artur Gomes dos Santos,
traçava, num livro sobre O Catolicismo em Portugal, um
quadro pouco risonho da situação: “Exceptuando algumas
regiões do Norte, onde o povo conserva o hábito da
missa diária e da prática frequente dos sacramentos, no
resto do país os templos estão quase sempre vazios. Na
capital, com excepção de algumas capelas pertencentes
a ordens religiosas, ao dia de semana ninguém vai à igreja;
ao domingo a concorrência é fraca e nunca se vêem
homens. Só mulheres. No Sul do país, principalmente
no Alentejo, é pior ainda. [...] Dos cinco milhões de católicos
que se atribuem a Portugal, nem um décimo são
católicos.” Segundo este autor, “o catolicismo ofi cial é
apenas... nominativo”.
Na semana passada, lembrei alguns caminhos da chamada
“cruzada” que a “reconquista cristã” do país exigiu,
durante a Primeira República e durante o Estado Novo.
Com todas as difi culdades, acertos, erros e desvios, nos
começos dos anos sessenta do século passado, o cardeal
Cerejeira olhava para trás com orgulho do caminho percorrido.
A Igreja, em Portugal, nem precisava das lições
do Vaticano II! Já tínhamos feito isso tudo e muito mais...
O êxito era o começo de uma nova crise.
3.Crise global, com expressões muito diversas segundo
os países e continentes, que João XXIII e
o Concílio Vaticano II procuraram enfrentar. A
interpretação deste acontecimento não é unânime
no seio da Igreja católica. Os nostálgicos
do passado lamentam o fi m do catolicismo identifi cado,
por Yves Congar, com a concepção piramidal da Igreja,
o “tridentinismo”. Para outros, sem o Vaticano II, estaríamos,
hoje, mergulhados nas contradições do islão
perante o mundo moderno e o pluralismo religioso.
Não esqueçamos que foi só neste concílio que
se conseguiu reconhecer, oficialmente, o direito à liberdade
religiosa.
Termina, hoje, o Sínodo católico para o Médio
Oriente. Ainda não é o momento para um balanço
deste importante acontecimento. Para além
dos problemas internos,de tradições e de aggiornamento
próprios a cada uma das Igrejas, no seio
da catolicidade, as Igrejas cristãs estão ameaçadas.
Os números são eloquentes: a saída dos cristãos do
Médio Oriente é maciça e diversificada. Mais da metade
de palestinianos, em maioria cristãos, vivem
fora do Médio Oriente. Só para o Chile, foram mais de 300 mil. A metade dos caldeus – cerca de 400 mil – fugiu do Iraque devido à guerra.
Num século, os cristãos, na Turquia, passaram de 25%
para 0,13%. Pelas suas instituições abertas a todos (escolas,
hospitais, universidades), os cristãos podem ser
factores de diálogo e de contacto entre comunidades, na
sua diversidade religiosa. O seu exílio é um verdadeiro
empobrecimento cultural.
Conseguirá este Sínodo transformar esta crise mortal
numa grande oportunidade para a liberdade religiosa
no Médio Oriente?
(1) Cf. Cristianismo em Crise?, Rev. Concilium 311 – 2005/3.
Links Amigos