In Público de 26 Dezembro
Seja onde for, o ser humano reduzido à febre de investir e consumir andará sempre consumido
MEMÓRIA PARA O FUTURO INCERTO
1. Não venho fazer um balanço de 2010. A conclusão
do livro de José Manuel Rolo, sobre os
labirintos da crise financeira mundial, mostra
que o capitalismo, ao contrário das suas vítimas,
desloca-se e transforma-se, mas não morre: “Parece
ser legítimo afirmar que esta crise, que não dá sinais
convincentes de querer abrandar, além dos incalculáveis
prejuízos que provocou por esse mundo fora, teve três
consequências fundamentais: decretou, espera-se, a falência
do capitalismo financeiro liberal desregulado, de
raiz anglo-saxónica com sede em Wall Street e na City de
Londres e ramificações nas restantes principais praças
financeiras mundiais; confirmou ou fez emergir outros
modelos de organização da vida económica, todos de raiz
capitalista, que se perfilam como alternativas à ‘economia
de casino’ e que vão desde o modelo liberal regulamentado
aos modelos nórdicos, à economia social de mercado
alemã e ao modelo chinês de capitalismo de Estado com
larga participação da iniciativa privada; e provocou o
primeiro grande abalo da supremacia do Ocidente e da
hegemonia dos EUA no mundo em favor da China e de
mais dois ou três países emergentes” (1).
Seja onde for, o ser humano reduzido à febre de investir
e consumir andará sempre consumido.
2. Feito este registo, não queria passar para 2011
sem referir outros livros importantes para a nossa memória. Destaco,
em primeiro lugar, o trabalho admirável de Mário Brochado Coelho sobre
a confluência de cinco tipos de grupo de intervenção cultural, social e política dos anos 60,na Confronto, Cooperativa Cultural do Porto:
um grupo de católicos portuenses relacionados
com os dominicanos do Convento de Cristo Rei;
um conjunto de jovens regressados da guerra
colonial; estudantes e padres frustrados ou insatisfeitos
com a sua experiência na JUC, na Juventude de Cristo Rei
e até com a própria Igreja Católica; um grupo organizado
de estudantes universitários, centrado, especialmente,
na Faculdade de Engenharia da UP; outros ainda, provenientes
de outras áreas, discordantes da actuação das
oposições clássicas e procurando novas vias de actuação.
Esta obra apresenta a sua criativa actividade durante seis
anos, de 1966 até à sua extinção e encerramento, em 1972,
por ordem do Governo Civil.
Sem poder reproduzir os diferentes aspectos do seu
importante legado, importa sublinhar que foi um lugar de
diálogo entre pessoas, ideias e grupos diferentes, situados
no quadro mínimo de defesa dos direitos humanos e oposição
política ao regime fascista de Salazar e Caetano. Foi
igualmente um lugar de tolerância ideológica e religiosa. A
Confronto serviu de estágio para muitas e muitos que nela
aprenderam a trabalhar em colectivo, a procurar meios
práticos de acção junto da população, a discutir e decidir
democraticamente, a viver de forma menos limitada os
seus sonhos de futuro. Nesta cooperativa, geraram-se múltiplas
ideias, situações, programas e perspectivas (2).
Na celebrada biografia de Sá Carneiro, escrita por Miguel
Pinheiro (3), é destacado o papel deste político na
constituição da Confronto, elaborando a primeira minuta
dos estatutos e sendo escolhido para primeiro presidente
da assembleia geral. Só deixou a Confronto, em 1969, para
entrar na chamada Ala Liberal da Assembleia Nacional,
por julgar opções incompatíveis.
3. É ainda no registo da memória que se inscrevem
as intervenções de D. Manuel Clemente,no campo plural da
cultura – entre 2009 e 2010 – agora publicadas (4). Neste magnífico
livro de esperança fundada, o bispo do Porto
apresenta-se como um “optimista realista”. É com olhos
de historiador e de pastor que vê a Igreja em Portugal e
no mundo. Não é uma reflexão de filosofia portuguesa
nem de teologia da história. São reflexões sobre a actualidade,
contextualizando-as, mediante olhares sobre o
nosso passado, para sermos lúcidos diante de um presente
que nos abra o futuro. Este livro é uma convocatória
para a intervenção dos cristãos na sociedade, apontando
exemplos, sem amaldiçoar quer a Igreja quer o mundo
e marcando, sem ingenuidade nem amargura, onde se
unem e se distinguem.
Nas suas “Boas-Festas” de Natal, este bispo oferece
companhia, com os cristãos católicos da Diocese do
Porto, para uma caminhada e explica: como “cristãos”,
referimo-nos a Cristo; como “católicos”, referimo-nos a
toda a gente, sem excepção, a todos aqueles que aceitam
a nossa companhia na estrada da vida. Ao fazer este
convite, recorda o que Bento XVI disse, no Porto, no
passado mês de Maio, num estilo pouco habitual na boca
de eclesiásticos: nada impomos, mas sempre propomos.
Propomos Aquele que um dia nos propuseram a nós e
sempre nos comunica esperança, companhia e paz: Jesus
Cristo! Quando celebramos de novo o nascimento
de Jesus, reforçamos a convicção de que Ele continua
connosco, “nascendo” em cada acto de solidariedade
verdadeira e atenção aos outros.
Terminamos um ano, entraremos noutro, enquanto nos
deixarem apanhar o comboio do tempo. Bom Ano!
(1) Cf. José Manuel Rolo, Labirintos da Crise Financeira Internacional
(2007-2010), Cosmos, 2010.
(2) Mário Brochado Coelho, Confronto. Memória de Uma Cooperativa
Cultural. Porto 1966-1972, Porto, Ed. Afrontamento,
2010.
(3) Miguel Pinheiro, Sá Carneiro, Esfera dos Livros, 2010.
(4) Manuel Clemente, Porquê e para quê? Pensar com Esperança
o Portugal de hoje, Assírio & Alvim, 2010
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