IN Público 27 Fev
DEUS OU O DINHEIRO
1. Os textos do Evangelho de Jesus Cristo, quando
não são anestesiados, parecem exercícios de
pura provocação. Os que foram propostos na
liturgia do domingo passado e na deste (Mt 5 e
6) deixam o pregador e as comunidades, se não
forem fundamentalistas, sem saber o que pensar. Não
se pode levar a mal, mas também não muito a sério, que
Jesus, de vez em quando, se deixe levar pelo seu pendor
anarquista e surrealista.
No domingo passado, com o pretexto de levar a Lei e os
Profetas à plenitude, afrontava a religião em que nasceu e
que o devia ter moldado. A expressão olho por olho, dente
por dente, parece um modelo equilibrado de justiça: não
há direito de arrancar dois olhos a quem só arrancou um,
nem de partir os dentes todos a quem só partiu alguns.
É uma questão de bom senso e delimitação da vingança,
expressa na consagrada leide talião (Ex 21, 25+ e par.).
Jesus não propõe nenhuma emenda a essa sentença.
Parece rejeitá-la sem contemplações, avançando com o
absurdo. “Digo-vos: não resistais ao homem mau. Mas
se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também
a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para
ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se
alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha,
acompanha-o durante duas.”
Vaiainda mais longe. “Ouvistes o que foi dito:
amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo.
Eu, porém, digo-vos: amaios vossos inimigos e
orai por aqueles que vos perseguem para serdes
filhos do vosso Pai que está nos céus.”
Depois de ter deixado o campo livre aos
maus, ainda vem com uma proposta inacreditável:
amai os vossos inimigos. Talvez que, assim,
possa tornar os bons heróis de virtude, mas
também encoraja os maus na sua maldade.
Sei que ninguém vai seguir os ditos de Jesus
para reformular o código penal e, muito menos, se
lembrará de os usar no funcionamento do Ministério da
Justiça e dos seus agentes. No entanto, é possível que, a
outro nível, Jesus tenha absolutamente razão.
2. O espírito de vingança nunca estará satisfeito
com nenhum sentido de proporcionalidade.
Com o ódio na alma, à violência só se responde
com mais violência. A alternativa à maldade
também não pode ser a cedência de terreno
aos reis da violência. A resistência ao mal é um imperativo
ético. A tolerância implica dizer não ao intolerável.
O século passado não foi, apenas, um século terrível, foi
também o da resistência não-violenta à violência: Mahatma
Gandhi(1869-1948), Nelson Mandela (1918-) e muitos seus
seguidores einspiradores abriram o único caminho que
não tem, dentro de si, o princípio da sua degenerescência.
Dentro da atitude e da prática de resistência não-violenta
à violência, existe aintuição de que é preciso que esta
resistência não nos torne, também a nós, violentos e, por
outro lado, mostre que o ciclo da violência não tem de ser
uma fatalidade. O amor dosinimigos que Jesus propõe não
é um sentimentalismo. É uma energia de transformação,
nossa e dos outros. É uma virtude.
Jesus passou a vida a denunciar ainjustiça e a tomar a
defesa dos oprimidos e excluídos, praticou a resistência
activa ao mal. Em pleno tribunal, não deixou de assumir
a sua defesa perante o sumo sacerdote e, quando agredido,
resiste: “Se faleimal, mostra em quê, mas, se falei
bem, por que me bates?”
3. Não é com lirismo que se pagam as contas ao
fim do mês. Os desempregados que o digam.
Jesus saberia disso, quando disse aos seus
discípulos: “Ninguém pode servir a dois senhores,
porque ou há-de odiar um e amar o
outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vós não
podeis servir a Deus e ao dinheiro. Porisso vos digo: não
vos preocupeis, quanto à vossa vida, com o que haveis de
comer ou de beber, nem, quanto ao vosso corpo, com o
que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento
e o corpo mais do que o vestuário? Olhaipara as aves do
céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros;
o vosso Paiceleste as sustenta. Não valeis vós muito
mais do que elas?”
Estaremos perante outro exercício de provocação?
A Bíblia hebraica nunca pôs em concorrência Deus e o
dinheiro, embora a chamada “teologia da prosperidade”,
que faz desta sinal de bênção divina, tenha sido
submetida a uma crítica feroz dos profetas.
Então, por que será que Jesus põe Deus e o dinheiro
em concorrência? Por uma razão muito simples: a
sacralização do dinheiro e do seuimpério é umaidolatria.
Faz dele o absoluto critério de tudo. É preciso
sacrificar-lhe tudo e todos os valores. O rico nunca
pensa que é suficientemente rico e o pobre ou remediado
o que deseja é ser rico. A publicidadeincendeia
ainsatisfação, o desejo, para nos tornar infelizes se não
tivermos tudo, e já, que ela nos propõe.
Jesus Cristo não vê no desejo um mal nem propõe
o esvaziamento do desejo como suprema iluminação.
Propõe a conversão do desejo: onde tiveres o teu tesouro,
aí estará o teu coração. Zaqueu, o rico, percebeu
isso rapidamente. Passou a restituir o roubo, a nunca
mais se aproveitar das necessidades dos outros e a
partilhar os seus bens. Jesus comentou: “A salvação
entrou na tua casa”, o que não tinha acontecido na
parábola do jovem rico.
Não há rivalidade entre Deus e a riqueza. Há rivalidade
entre a Plenitude da Vida e a distorção do desejo que se
deixa possuir pelo fascínio do dinheiro e de tudo o que
ele exige e permite.
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