Da página de Miguel Simão, no Facebook, com a devida vénia:
A mãe cresceu no gosto pela Serra de Aire que herdou dos seus – a distância, as pedras brancas na terra vermelha, troncos magros de oliveira, um despojamento, um crescer do espírito tão dos monges que habitaram aquelas paragens.
...Criança, brincava com tijolos ou coisas esquecidas, construindo as suas casas, envolvendo pátios interiores. As suas mãos foram-se formando nestes jogos de sonhos.
As mesmas mãos com que coloca nas telas, com pinceladas fortes, o branco dos muros caiados, os troncos de oliveiras retorcidas, os rostos sofridos, as marinhas, com que raspa na tela, voltando a pintar ou deixando assim, dando a força que faltava.
Um percurso interior, uma espiritualidade profunda, de onde brota a sua pintura, ou, muitas vezes em momentos de insatisfação, a sua poesia.
“ É uma vida” – Ouviu de uma mulher sábia, com a sua silhueta negra a destacar-se no branco das Carreiras, onde tantas vezes ia pintar. Uma vida, a pôr a render os seus talentos.
Escreveu:
“Eu sei, Senhor que nada acontece por acaso.
Pelo meu caminho prossegui segura de ti, na insegurança de mim.
Ardente e limitada, ás vezes confusa – assim prossegui.
E tu estiveste sempre, Senhor. Em cada hora. Cada pessoa. Em cada passo.
Sempre no caminho da procura – caminho de Encontro.
Eu sei, Senhor, que nada acontece por acaso.”
A doença surgiu inesperada. Ainda esteve em Alcanena. Sentiu-se em casa. Os passos tornam-se mais difíceis, um olhar sereno, os movimentos já não lhe pertencem, em aceitação. A gratidão nos pequenos gestos. Um sorriso, um encantamento, um dom de amor no beijo que pede e que dá. Vai-se desprendendo , sente que já não conduz os seus gestos, deixa-se conduzir. “Já não sou eu que faço são os outros que fazem por mim”. Cada vez mais o seu olhar é para o Senhor “ Só o Senhor tem palavras de vida eterna.” É a sua Fé que a conduz. “ Já não sou eu que vivo é o Senhor que vive em mim” Os seus olhos ganham vida no momento da comunhão.
O seu olhar já não se fixa no nosso. O sopro da vida, vai-se libertando do seu corpo. A mão, com que deu forma à sua sensibilidade, em luta sobre a superfície da tela, onde acrescentava camadas de tinta sobre o esboço feito a carvão, rasga agora no ar, traços de um desenho que já não entendemos. O Senhor vai preparando a sua morada. Como será o encontro, podemos só imaginar, uma imagem desfocada que se vai tornando mais nítida. Uma vida a fazer esboços da Santa Face, agora, face a face com Cristo. O ultimo carvão.
“Eu quero misturar-me com a terra, ser terra e sonho depurado. Na dor do mundo eu quero dissolver-me.
Amor em ânsia sempre oposto à morte a recriar-se”
In Diário, Outubro de 73
Miguel Simão
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