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Chegou o tempo da azeitona e os campos animam-se. Vindas das cidades e dos seus subúrbios, velhos silenciosos armam sob a copa das árvores centenárias imensos panais verdes, encostam escadas às suas ramarias densas e ali passam os dias, ripando ou varejando as oliveiras.
Este refluxo sazonal tem o peso de uma romaria onde não se veneram os santos, mas antes se consagra à árvore tutelar. A árvore sacralizada por todos os ritos mediterrânicos, a árvore da paz e da luz, do óleo santo e do lume acolhedor. A árvore que acolheu as premonições de um Cristo orando no horto, e que depois da sua morte, lhe vem iluminando sem interrupções a noite dos altares. Ungido foi Ele pelo óleo sagrado, tal com a nós nos aguarda a unção final antes de franquearmos o eterno que o nada é.
Sozinhos ou em pequenos grupos comandados pelos mais velhos (mais saudosos, mais sabedores), despidos das roupas citadinas, perdem-se nos descampados assolados pelas chuvas, escondidos nas neblinas ou crestados pelas geadas, regressando sempre ano após ano, reavivando os caminhos velhos que ninguém percorre.
Têm saudades da terra e voltam, pontuais, cada vez mais velhos e teimosos. Contidos, reúnem-se sob as copas vetustas, parcos de palavras; são testemunhas de um outro tempo que soçobrou, e os seus gestos passados de geração em geração, não são suficientes para acordarem o passado. Os campos abandonados já não acolhem cânticos nem risos, apenas silêncios.
Ortiga.Mação.
Aqui e além uma coluna de fumo cinzento desprende-se das fogueiras que crepitam com as ramas queimadas. Assinalam o quê, com semelhantes códigos? Se calhar, o fugaz regresso dos humildes proprietários, terratenentes de tapadas e courelas que o campo expulsou em tempos, e que agora regressam, mais pelo peso do simbólico do que pelo preço do azeite. Ou talvez reafirmem a posse da terra com estes padrões efémeros, tão efémeros como o destino que lhes ditou o rumo das suas vidas.
Enchem sacas de frutos, da negra galeguinha ou da verde cordovil, e cumprem os roteiros dos lagares que, nas margens dos ribeiros ou nas quelhas dos povoados, moem uma vez por ano com engrenagens saídas dos tempos bíblicos. Só descansam quando tudo acaba.
Mas não acaba, porque os ciclos são infinitos e eles sabem-no. Para o ano, prometem, no tempo da azeitona, patuscadas, pão, chouriço, vinho novo.
Para o ano, no tempo da azeitona, despedem-se.
É esse o tempo em que, mais do que sangue, lhes corre terra pelas veias.
Rogério Carvalho
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antónio colaço
campos de Ortiga
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