Sábado, 27 de Outubro de 2012
WEBANGELHO SEGUNDO ANSELMO BORGES

Pe Anselmo Borges

In DN

LUTO (S)

POR QUEM OS SINOS DOBRAM

 

Várias vezes me perguntaram por que é que não escrevia algo sobre o(s) luto(s). Aí fica então a tentativa (hoje e no próximo sábado) de satisfazer esses pedidos. E faço-o nesta ocasião, porque, num tempo em que a morte se tornou tabu - o último tabu -, as nossas sociedades permitem que os mortos nos visitem nestes dias, concretamente 1 e 2 de Novembro.

O dia 1 será este ano feriado nacional pela última vez. Permita-se-me, neste contexto, que manifeste a minha total discordância pelo facto de, na negociação do fim de dois feriados religiosos, a Santa Sé - o Vaticano, na linguagem corrente - ter optado por cortar o dia de Todos os Santos em vez do dia 15 de Agosto, Assunção de Nossa Senhora. Afinal, já havia uma festa dedicada a Nossa Senhora, a Imaculada Conceição, no dia 8 de Dezembro. E os dias 1 e 2 de Novembro são mais universais, pois são os dias da Memória e da Interrogação.

A palavra luto (do latim luctus, dor, mágoa, aflição, lamentações, lágrimas) significa, nas várias línguas - duelo, Trauer, lutto -, dor, principalmente pela morte de alguém. Principalmente. De facto, é a dor pela perda, e há muitos tipos de perda: o desemprego, o fim de um namoro, um divórcio, a reforma, um fracasso profissional... Mas é sobretudo dor pela morte de alguém. Porque a perda principal e sem retorno é a morte.

O primeiro luto deve ser por nós próprios, isto é, luto de cada um por si mesmo, no sentido de cada um se reconciliar, se ir reconciliando, com a sua mortalidade e, assim, com a sua própria morte. Hemingway escreveu um romance famoso, pleno de humanidade: Por Quem os Sinos Dobram. Afinal, por quem dobram os sinos? É por ti. Por cada um de nós. Por mim.

Para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se tratam os mortos. Porque esse "como" da morte explica o "como" da vida. Na nossa sociedade do cálculo, da razão instrumental, da eficácia, da produção que deveria ser ilimitada e do afago festivo e agitado do consumo e do bem-estar consumista, a morte teve de tornar-se tabu: disso pura e simplesmente não se fala, porque é de mau tom e mau gosto. E assim se construiu uma sociedade assente na mentira. Com efeito, podemos tentar esquecer a morte, ela não se esquecerá de nós.

Não se julgue, portanto, que se tenta não pensar na morte, porque a morte já não é problema. É exactamente o contrário: de tal modo a morte é problema, um problema para o qual uma sociedade poderosíssima concretamente no domínio técnico não tem solução que a única solução é calá-lo, ocultá-lo.

Já Pascal chamou a atenção para isso, no quadro do seu divertissement. "Quando algumas vezes me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e trabalhos a que se expõem, na corte e na guerra, e que dão origem a tantas contendas, paixões, empreendimentos ousados, e muitas vezes maus, descobri que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa: não saberem estar sossegados num quarto. Mas, quando pensei de perto no assunto, e quando, depois de ter encontrado a causa de todas as nossas infelicidades, quis descobrir a razão dela, vi que só há uma razão muito efectiva, que consiste na desgraça natural da nossa condição fraca e mortal."

Não se trata, como é evidente, de um pensar mórbido na morte - esse pensamento é detestável, tanto mais quanto foi utilizado até pela Igreja para, pelo terror da morte e do Além, exercer domínio e controlo sobre as consciências. Pelo contrário, do que se trata é de reconciliar-se e conviver de modo sadio com a morte própria. Por duas razões fundamentais. Porque o pensamento da morte atira-nos, como mostrou Heidegger, para a distinção clara entre a existência autêntica e a existência inautêntica, entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. Por outro lado, a consciência do limite temporal da existência no mundo obriga a viver intensamente cada instante. Só se vive uma vez e tudo é sempre pela primeira e última vez. O que temos a fazer é aqui e agora. Não há adiamento possível. E da nossa vida podemos fazer uma obra de arte ou um desastre.



publicado por animo às 12:58
link do post | favorito

Comentar:
De
  (moderado)
Nome

Url

Email

Guardar Dados?

Este Blog tem comentários moderados

(moderado)
Ainda não tem um Blog no SAPO? Crie já um. É grátis.

Comentário

Máximo de 4300 caracteres



Copiar caracteres

 



pesquisar
 
Março 2018
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30
31


posts recentes

DA ARTE E DOS ESPAÇOS INE...

OBRIGADO, MANUEL

ANTONIO COLAÇO NO "VOCÊ N...

PE ANSELMO BORGES NOS ANI...

ANA SÁ LOPES NOS AAAANIMA...

ANA SÁ LOPES NOS ANIMADOS...

O OUTRO LADO DO AAANIMADO...

LISBOAS

CHEF PEDRO HONÓRIO OU AS ...

BALANÇO FINAL . JOAQUIM L...

REGRESSARAM OS AAANIMADOS...

IN MEMORIAM ANTÓNIO ALMEI...

PE ANSELMO BORGES NÃO TE...

MINISTRO CAPOULAS SANTOS ...

WEBANGELHO SEGUNDO ANSELM...

CARDIGOS, AS CEREJAS E O ...

trip - ir a mundos onde n...

´WEBANGELHO SEGUNDO ANSEL...

ANDRÉS QUEIRUGA EM PORTUG...

WEBANGELHO SEGUNDO ANSELM...

arquivos

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Outubro 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

tags

todas as tags

links









































































































































































































subscrever feeds