Quinta-feira, 5 de Novembro de 2015
WEBANGELHO SEGUNDO ANSELMO BORGES

18313714_2tdsj.jpg

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A morte: o último tabu

 In DN  31Out

Sobre os dias 1 e 2 de Novembro, dias dos mortos e da pergunta essencial.

1- É bem possível que, para se perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e se trata a morte. Facto é que as nossas sociedades desenvolvidas, tecnocientíficas, do primado do ter sobre o ser, da eficácia, da vertigem do poder, do tempo digital e da aceleração, são as primeiras na história a fazer da morte tabu. Mais: assentam a sua realidade no tabu; para serem o que são, têm de fazer da morte tabu.

2-O que se passou? Nos princípios do século XX, o filósofo Max Scheler, reflectindo sobre o recalcamento da morte na sociedade europeia, foi encontrá-lo na modernidade, quando se deu uma estrutura diferente de experiência, centrada nos impulsos do trabalho, do domínio e do lucro. O homem moderno já não frui de Deus e a própria natureza já não é a terra natal acolhedora, que provoca admiração e espanto, mas tão-só o espaço da possibilidade de manifestação da subjectividade dominadora, como diz o soberano "penso, logo existo" de Descartes. Desde então, tudo fica sujeito ao cálculo, ao útil, ao funcional. Ora, se tudo é submetido ao útil e mecânico, orientado para o poder e ter sempre mais, já não há lugar para os outros valores. Num mundo matematizado e calculável, em que "é real o que é calculável", o homem moderno, centrado no activismo, pretendeu superar a angústia da morte através do domínio sem limites, de tal modo que o que fica é o progresso ilimitado, sem finalidade nem sentido humanos. O progresso, em que o progredir pelo progredir é o seu próprio sentido, transformou-se no substituto da vida eterna. Este homem, mediante os impulsos do trabalho, do lucro e do prazer sem limites, fica narcotizado quanto ao pensamento da morte. Na agitação constante, que tem em si mesma a sua finalidade e que se concentra no divertissement pascaliano, o homem moderno europeu julgou encontrar o remédio para a ideia da morte. Mas esse remédio é ilusório, pois, agora, a morte, em vez de aparecer como "o preenchimento necessário de um sentido vital", é poder e brutalidade sem sentido. O homem tradicional vivia face à morte com certa naturalidade e até familiaridade. O homem moderno, ao contrário, como vive como se não tivesse de morrer, como já não sabe "que tem de morrer a sua própria morte", quando esta aparece, só lhe pode aparecer como uma catástrofe. Vive no dia-a-dia, até que, subitamente, já não há mais um novo dia.

3- Este nosso universo tem 13 700 milhões de anos. Quase 14 000 milhões de anos! Tanto foi o tempo que demorou o processo até chegar a um existente que não só sabe mas sabe que sabe e sobretudo sabe que não sabe ilimitadamente e, por isso, pergunta. Um animal que é racional, falante, simbolizante, artista, moral... sepultante. Neste gigantesco processo da evolução, o aparecimento dos primeiros túmulos e dos rituais funerários é o sinal característico e decisivo da presença do ser humano no mundo. Pela primeira vez, está no tempo alguém que é consciência do tempo, portanto, da inevitabilidade de morrer e que simultaneamente recusa a aniquilação definitiva. É a consciência da morte que revela a emergência do radicalmente novo, a passagem do pré-humano ao humano, de "algo" a "alguém".

4- A morte é impensável em si mesma. Quando pensamos nela, é sempre no abismo do impensável que mergulhamos. Só por ilusão de linguagem é que dizemos, diante do cadáver do pai, da mãe, da mulher, do amigo: ele (ela) está aqui morto (morta). Na realidade, ele ou ela não está ali: o que falta é precisamente ele ou ela. E ninguém leva o pai ou a mãe, o filho, o amigo, à "última morada", para enterrá-los ou cremá-los. Como não tem sentido dizer que eles estão no cemitério e que vamos lá visitá-los. Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. Então, porque é que a sua violação é uma profanação execranda? O que há verdadeiramente nos cemitérios? Naquele espaço sagrado, do silêncio recolhido, está, paradoxalmente, a fonte da linguagem enquanto espaço da abertura e da pergunta. O que há nos cemitérios é um infinito ponto de interrogação: "O que é o homem?" A morte e o seu pensamento abrem a condição humana ao desconhecido, à Transcendência inominável, que apela e que invocamos.

5- Com o tabu da morte apagaram-se as perguntas últimas e primeiras, metafísicas, e também a ética e a moral. Porque é a consciência do limite na morte que derruba as vaidades, que obriga a perguntar ilimitadamente e nos dá a distinção do justo e do injusto, do que verdadeiramente vale e do que não vale, da "existência autêntica" e da "existência inautêntica" (Heidegger). Percebe-se então que as nossas sociedades, da banalidade rasante, niilistas, tenham feito da morte tabu, o último tabu. Agora, vale tudo, porque nada vale. E é o espectáculo que se sabe e se vê!

 



publicado por animo às 01:27
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Março 2018
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
13
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30
31


posts recentes

DA ARTE E DOS ESPAÇOS INE...

OBRIGADO, MANUEL

ANTONIO COLAÇO NO "VOCÊ N...

PE ANSELMO BORGES NOS ANI...

ANA SÁ LOPES NOS AAAANIMA...

ANA SÁ LOPES NOS ANIMADOS...

O OUTRO LADO DO AAANIMADO...

LISBOAS

CHEF PEDRO HONÓRIO OU AS ...

BALANÇO FINAL . JOAQUIM L...

REGRESSARAM OS AAANIMADOS...

IN MEMORIAM ANTÓNIO ALMEI...

PE ANSELMO BORGES NÃO TE...

MINISTRO CAPOULAS SANTOS ...

WEBANGELHO SEGUNDO ANSELM...

CARDIGOS, AS CEREJAS E O ...

trip - ir a mundos onde n...

´WEBANGELHO SEGUNDO ANSEL...

ANDRÉS QUEIRUGA EM PORTUG...

WEBANGELHO SEGUNDO ANSELM...

arquivos

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Outubro 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

tags

todas as tags

links









































































































































































































subscrever feeds