O PESADELO DO TEÓLOGO
Pe Anselmo Borges
In DN
1. Bertrand Russell, para lá de ser um dos grandes matemáticos do século XX e filósofo, foi um escritor brilhante e irónico, Prémio Nobel da Literatura. No seu livro de Contos, há um, célebre, com "o pesadelo do teólogo". Vou resumir.
"O teólogo eminente Dr. Thaddeus sonhou que tinha morrido e seguido rumo ao Céu. Os estudos haviam-no preparado e não teve dificuldade em encontrar o caminho. Bateu à porta do Céu e foi recebido com um escrutínio maior do que esperava. Disse: - Peço admissão porque fui um homem bom e dediquei a vida à glória de Deus. - Homem? - exclamou o porteiro. - O que é isso? E como podia uma tão estranha criatura como o senhor fazer alguma coisa para promover a glória de Deus?
O Dr. Thaddeus ficou espantado. - O senhor decerto que não ignora o homem. Deve saber que o homem é a obra suprema do Criador. - Quanto a isso - tornou o porteiro - lamento magoá-lo, mas o que está a dizer é novo para mim. Duvido que alguém cá em cima já tivesse ouvido falar dessa coisa chamada "homem". No entanto, uma vez que parece tão desapontado, pode consultar o nosso bibliotecário.
O bibliotecário, um ser esférico com mil olhos e uma boca, pousou alguns dos seus olhos sobre o Dr. Thaddeus. - O que é isto? - perguntou ao porteiro. - Isto diz que é um exemplar de uma espécie chamada "homem" que vive num lugar chamado "Terra". Julga que o Criador tem um interesse especial por esse lugar e por essa espécie. Pensei que talvez pudesse esclarecer".
Depois de o teólogo ter explicado que a Terra é parte do Sistema Solar, que por sua vez é parte da Via Láctea, uma galáxia entre milhares de milhões, foi mandado chamar um dos sub-bibliotecários, especializado em galáxias e que tinha a forma de um dodecaedro. Assim, umas três semanas depois, com o trabalho exaustivo de cinco mil empregados, "o sub-bibliotecário voltou e explicou que o ficheiro extraordinariamente eficiente da secção galáctica da biblioteca lhe havia permitido localizar a galáxia como número XQ 321,762". O Dr. Thaddeus explicou então ao empregado especialmente interessado na galáxia em questão, um octaedro com um olho em cada face e uma boca numa delas, que o que ele desejava saber se referia ao Sistema Solar, uma colecção de corpos celestes que gira à volta de uma das estrelas da galáxia, chamando-se essa estrela "Sol".
"- Safa!" - disse o bibliotecário da Via Láctea. - "É difícil descobrir a galáxia, mas descobrir a estrela dentro da galáxia é ainda muito mais difícil. Sei que há cerca de trezentos mil milhões de estrelas na galáxia, mas não sei distingui-las umas das outras. Creio, todavia, que, uma vez, foi pedida pela Administração uma lista de todos os trezentos mil milhões e isso deve estar ainda guardado na cave. Se achar que vale a pena, arranjarei pessoal especial do Outro Lugar para procurar essa estrela."
Alguns anos mais tarde, foi um tetraedro arrasado de cansaço que compareceu diante do sub-bibliotecário galáctico, dizendo: "Descobri, finalmente, essa estrela especial sobre a qual foram feitas investigações, mas estou absolutamente desorientado quanto ao interesse que ela levantou. Faz lembrar muitas outras estrelas da mesma galáxia. É de tamanho médio, de temperatura média, e está cercada por corpos muito pequenos chamados "planetas". Após minuciosa investigação, descobri que alguns desses planetas, pelo menos, têm parasitas, e creio que essa coisa que tem estado a fazer perguntas deve ser um desses parasitas."
Nessa altura, "o Dr. Thaddeus desatou num indignado e apaixonado lamento: - Porque é que o Criador escondeu de nós, pobres habitantes da Terra, que não fomos nós que o levámos a criar os céus? Servi-O toda a minha vida, servi-O diligentemente, acreditando que Ele havia de reparar no meu serviço e recompensar-me com a Felicidade Eterna. E agora até parece que nem sequer sabe da minha existência. O senhor diz-me que sou um animálculo infinitesimal num minúsculo corpo que gira em volta de um insignificante membro de uma colecção de trezentos mil milhões de estrelas, colecção esta que é apenas uma entre muitos milhares de milhões. Não posso aguentar isto. Não posso mais adorar o meu Criador. - Muito bem - retorquiu o porteiro. Então pode ir para o Outro Lugar.
Aqui, o teólogo acordou. E murmurou: - O poder de Satanás sobre a nossa imaginação adormecida é terrível".
2. Afinal, ocupamos um lugar periférico no Universo. Pascal perguntava: "O que é um homem no infinito? Apavora-me o silêncio dos espaços infinitos." Mas, por outro lado, é no homem que este processo gigantesco toma consciência de si. Somos reflexivos e temos autoconsciência: desdobramo-nos e reconhecemo-nos. Sabemos do bem e do mal. E levamos connosco a pergunta inevitável e triturante do sentido, do sentido último: qual o sentido de tudo?, porque há algo e não nada?, o que vale a minha vida?, existimos porquê e para quê? Transportamos connosco a questão da morte e de Deus, a dupla face do Absoluto.
COMENTÁRIO
De facto o Deus que nos tem sido servido, arrumadinho, em ciclos litúrgicos muito especificadinhos, entre bulas e anos jubilares redentores por inteiro de um passdo pecaminoso, se te confessares, se te ajoelhares, um Deus que tudo vê e que está preparado para te castigar à esquina das tuas insuficiências e tentaçoes....esse Deus do mais fácil não pode, de facto, existir.
O Pe Anselmo continua a subir a p...arada no sentido de nos fazer confiar no Deus que tardamos em perceber estar mais próximo de nós do que julgamos.
Sim, esse Deus feito de pesadelos não pode mesmo existir.
O alívio que pressentimos só pode ser ele mesmo uma manifestação do Deus "felicitante"!!!!
antónio colaço
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