NR-PUBLICAM-SE EM CONJUNTO AS TRÊS ÚLTIMAS CRÓNICAS (WEBANGELHOS) DE FREI BENTO DOMINGUES.
As nossas desculpas pela involuntária ausência.
antónio colaço
Os avanços científicos e técnicos não são promessas de vida eterna
1. Só acreditas em Deus porque te dá jeito. Recebo muito bem esta velha censura de amigos agnósticos e ateus. Só me faltava acreditar porque via nisso uma desgraça.
O que torna a ideia de Deus inacreditável ou inaceitável para muitas pessoas, já foi expressa de mil maneiras. Em alguns meios, a mais corrente é esta: Deus não pode ser simultaneamente omnisciente, omnipotente e bom. Diante do sofrimento do mundo não sabe, não pode, ou não é tão infinitamente bom como se diz. Há outras razões mais sofisticadas de ateísmo. Não pretendo refutar nenhuma. Haverá sempre razões para dizer sim e razões para dizer não. Quando perguntaram a Einstein se acreditava em Deus, respondeu: primeiro gostaria de saber em que Deus está a pensar ao fazer essa pergunta.
Conheço confissões de fé em Deus que, para mim, são tão perversas que gostaria que não existissem. A Divindade foi e é invocada para fazer guerras e extermínio de populações. Na própria Bíblia há passagens, Livros e Salmos, absolutamente insuportáveis, mas não aconselharia a sua eliminação. Ao dizerem o que não se deveria nunca dizer de nenhum deus, revelam aquilo de que somos capazes: de colocar na boca de Deus os nossos interesses, mesquinhos ou detestáveis.
Por outro lado, quando, perante uma desgraça, natural ou provocada, se diz que é a vontade de Deus, sei que não acredito nessa peça do determinismo. Espero que Deus não tenha tão má vontade.
2. Gostar de sofrer, seja por que motivo for, não me parece uma virtude, mas uma doença. A glorificação do sofrimento tornou-se a marca de certo cristianismo que julga encontrar na cruz de Cristo a sua justificação. A espiritualidade dolorista não tem nada a ver com o Espírito do Evangelho. Não consta que Jesus gostasse de sofrer e muito menos de ser crucificado. Pelo contrário, gostava da vida e apenas queria que ela fosse abundante para todos. Sentou-se à mesa de santos e pecadores sem nunca exaltar o jejum. Por alguma razão, os seus adversários o acusaram de glutão e beberrão [1].
Ao fazer uma cruz na fronte de quem pede o Baptismo, já tenho ouvido esta observação: porque marcam a criança ou o adulto com o sinal da suprema crueldade? Sinto sempre necessidade de esclarecer: Jesus Cristo nunca desejou a cruz. A sua proposta era e é um caminho de alegria, o Evangelho da libertação. Foi assim que se apresentou na sua própria terra natal [2]. Se gostasse de ver as pessoas a sofrer, não se teria comovido com a doença, física e psíquica, com a morte. Não teria exaltado a ética samaritana e denunciado a situação dos oprimidos. A cruz foi-lhe imposta pelos donos da dominação religiosa e política. Preferiu ser crucificado a renegar o seu projecto de libertação divina e humana.
3. Quando me dizem que acredito em Deus porque isso me dá jeito, tenho de dizer que sim. Jesus Cristo não trouxe uma explicação de Deus, do ser humano, do sofrimento ou da morte, mas não se rendeu ao fatalismo. Nada tem de ser sempre assim, pelos séculos dos séculos. Sem ver o resultado final da sua intervenção, Jesus anunciou uma lógica muito original: quem perde, ganha e quem ganha, perde. Gastar a vida a dar alegria aos que precisam, mesmo que seja de um copo de água, é tocar o Reino dos Céus, transformando as relações humanas no que têm de mais exaltantes ou de mais banal.
Os avanços científicos e técnicos não são promessas de vida eterna. Que Deus os abençoe pela vida, pelo alívio e pela esperança que trazem à nossa viagem. Ajudam-nos a vencer a falsa mística do sofrimento.
Escrevo este texto depois do funeral do Frei Luís França. Sofreu muito, sem nunca se render. Cantámos, numa música muito bela, este poema de Frei José Augusto Mourão:
Não pode a morte reter-me na cruz. /Não pode o mundo arrancar-me à raíz./ Ao pé de Deus hei-de sempre viver./ Com Deus cheguei e com Ele vou partir.//Não pode a morte apagar o desejo/ de ver a Deus face a face e viver./ A Deus busquei toda a vida/ vivi de acreditar no infinito da vida.// Não nos reduz o escuro da noite./ Não pode o amor esquecer o que o altera./ Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos/ já ouço a voz do amigo que vem.// A Ti a vida me toma e transporta./ Teu sangue inunda meu corpo de paz./ Eu vejo as mãos do Senhor glorioso/ nas minhas mãos a memória de Deus.// A Ti Senhor, meus desejos regressam./ Findo o andar, disponíveis as mãos./ Abre meu corpo ao devir que não sei/ eu chamo a esperança pelo nome de Deus.
Ilumina meus olhos da luz do teu Dia, e que um canto de paz me acorde da morte.
[1] Lc 7, 33-35
[2] Lc 4, 14-44
O diálogo inter-religioso, para ter sentido, deve ajudar a conversão das religiões a partir daquilo que é essencial em cada uma delas.
1. Nunca vivi em países que invocassem explicitamente a religião para fazer a guerra. No próprio coração da civilização moderna, os totalitarismos do século XX – soviético, fascista, nazi, maoista – com mais de cem milhões de vítimas inocentes, não eram movidos por qualquer religião. A guerra foi muitas vezes encarada como o motor da história. Com o desenvolvimento sempre crescente das ciências e das técnicas poderá tornar-se a sua destruição.
Foi em épocas de muita violência que trabalhei em alguns países de Africa ou da América Latina. Nenhum deus era invocado para abençoar a crueldade. Em alguns casos, o ateísmo era a regra. Essas guerras não precisavam da bênção de nenhuma divindade. Ainda hoje, o comércio de armas, o tráfico de pessoas e de órgãos, o trabalho escravo, a prostituição, o narcotráfico, a criminalidade organizada nem sempre pertencem a organizações religiosas! A idolatria do dinheiro tem pessoas e serviços bem organizados, a nível local e à escala global, que dispensam o recurso a qualquer outra divindade.
No plano religioso, a pergunta mais importante talvez seja esta: ainda haverá religiões que se alimentam de sacrifícios humanos? Se isto for verdade, o dever da memória não pode substituir a coragem de olhar para o presente.
2. Ao longo dos anos, tenho sido convidado para participar em colóquios de e sobre o diálogo inter-religioso. Sempre que posso, aceito com fervor. Como diz o Papa Francisco, com diálogo verdadeiro, seja em que campo for, todos ganham.
Desde os finais do séc. XIX que existem fóruns permanentes de diálogo religioso, como o Parlamento Mundial de Religiões, fundado em 1893. No âmbito da Igreja católica, foi, sobretudo, a partir do Vaticano II que várias iniciativas confluíram para a criação do actual Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso. Estas actividades tornaram-se frequentes, bem aceites e já marcantes no campo da teologia [1].
Esta normalidade corre sempre o risco de se tornar um ritual que se cumpre e do qual pouco se espera, mas seria injusto desvalorizá-lo. A passagem das hostilidades para o conhecimento e acolhimento mútuos das religiões é um acontecimento que já não nos espanta. Tornou normal o que deveria ter sido sempre a norma.
Deve tornar-se um caminho para a universalização da prática da liberdade religiosa. Antes do Vaticano II, para muitos católicos, era absurdo defender esta liberdade. A tese ortodoxa era simples: só a verdade tem direitos; a depositária da verdade e da sua defesa era a Igreja católica, fora da qual não havia salvação.
A declaração sobre a liberdade religiosa foi discutida, desde o início deste admirável Concílio, mas teve de vencer tantos obstáculos, que só a 7-12-1965 é que foi aprovada. Hoje, é uma bandeira e, sem ela, estaríamos como as religiões que exigem liberdade para si no estrangeiro, mas que a negam onde são elas próprias a impor a lei. É a velha táctica: em nome das vossas leis, exigimos liberdade e auxílios especiais; em nome dos nossos princípios e do nosso regime religioso e político, temos de vos negar essa liberdade.
3. Nenhuma religião tem o direito de impor os seus dogmas, ritos e normas às outras confissões. Seria continuar uma violência execrável, mas se cada uma só pensar em manter-se, defender-se e expandir-se, o chamado diálogo torna-se uma simples capa para o proselitismo das mais aguerridas. Todas têm de procurar descobrir de que reformas precisam.
Não será o dever de todas as religiões, no mundo actual, para além daquilo que as possa individualizar, aplicar a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Poderá discutir-se a universalidade desta declaração, no entanto, o primeiro dever é o reconhecimento de que todos têm direito a ter direito. Os cristãos dispõem de um princípio fundamental para avaliar o alcance ético de todas as instituições, religiosas ou não: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. A instituição, tida por mais sagrada, está submetida a algo de ainda mais sagrado: o bem do ser humano.
Do ponto de vista católico, o Vaticano II representa uma grande revolução a respeito de muitos comportamentos e instituições que se desenvolveram dentro da história da Igreja. Aplicou-se um velho princípio: ecclesia semper reformanda. Isto significa que a Igreja não se pode contentar com o que foi realizado nesse concílio. Os desafios, que os sinais dos tempos vão identificando, precisam sempre de novas respostas. Sabemos que, infelizmente, as contra-reformas não desarmam. O Papa Francisco já está a ver que não pode contar com nenhuma auto-estrada. Um processo de reforma nunca pode ser um acto voluntarista. Precisa de criar um clima que possa atrair mesmo aqueles que andam a criar obstáculos e denunciar aqueles fariseus que, como dizia Jesus de Nazaré, não entram nem deixam entrar. O diálogo inter-religioso, para ter sentido, deve ajudar a conversão das religiões a partir daquilo que é essencial em cada uma delas.
[1] Andrés Torres Queiruga, O diálogo das religiões, Paulus, 2005
A restauração das diaconisas não me parece que vá ser difícil. O Papa deseja ir mais longe.
1. Uma senhora inglesa confessava a uma amiga teóloga: Quando vou à Igreja sinto que tenho de deixar lá fora o meu cérebro. Não é caso único.
Em vários documentos do Vaticano II, nomeadamente na Constituição sobre a Igreja [1], a participação na Eucaristia é fonte e cume de toda a vida cristã. No documento da V Conferência do episcopado latino-americano [2], afirma-se que “todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a eucaristia for o centro da sua vida e a Palavra de Deus for o farol de seu caminho e da sua actuação na única Igreja de Cristo [3]”.
Por falta de presbíteros, só no Brasil, 70% dos católicos estão privados da Eucaristia. Mas se na América Latina, a situação é difícil, que dizer de Africa? Na Europa, a situação é caricata. Os padres são cada vez menos e correm de um lado para o outro, não só aos Domingos, mas também nos dias de semana, dados os constantes pedidos de Missas. Decidiu-se, no pontificado de João Paulo II, que as mulheres, por não serem homens, não podem ser chamadas ao presbiterado. Por outro lado, confessa-se que não existe nenhuma objecção à ordenação de homens casados, mas o resultado é igual ao das mulheres: a seara é grande, mas os feitores recusam ao Senhor da messe a hipótese de chamar e diversificar mais operários.
Por razões de teologia incompetente, de miopia pastoral, de confiança cega em grupos e movimentos pseudo-salvadores, a situação eclesial agrava-se de dia para dia.
2. Até agora, tem havido bastante má vontade do comando masculino das instituições romanas e episcopais em reconhecer o papel das mulheres na Igreja. Não foi difícil designar uma mulher como mãe da Igreja, a mãe de Jesus. Nada de espantar, a ladainha dos atributos de Maria dá para isso e muito mais. Há mulheres canonizadas e está reconhecido que algumas têm muito a ensinar ao conjunto das comunidades cristãs. Foram declaradas Doutoras da Igreja. Excepções…
Os textos do Novo Testamento foram, provavelmente, escritos por homens. Apesar do seu normal machismo cultural e religioso, não puderam evitar a presença actuante das mulheres que tiveram um comportamento muito superior ao dos discípulos. Estes manifestaram sempre a sua vontade de poder e, quando viram o Mestre crucificado, abandonaram-no. Pelo contrário, tanto os Evangelhos sinópticos como o de João manifestam que elas, do começo ao fim, seguiram Jesus com dedicação extrema – financiaram o projecto - sem nunca pedirem nada em troca [4]. Tanto a Samaritana como Marta, irmã de Lázaro, fizeram declarações de fé muito mais profundas e abrangentes do que a de Pedro. As mulheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição e Maria Madalena foi constituída por Jesus como a apóstola dos apóstolos, como dirá S. Tomás de Aquino.
3. O Papa Francisco, como já revelou em várias circunstâncias e textos, anda empenhado em reconhecer a urgência e o alcance do papel cristão das mulheres na Igreja. Não o faz para entrar na onda importante dos movimentos feministas. Para ele, isso é pouco. Bergoglio tem uma razão mais simples e fundamental: não há dois baptismos, um para homens e outro para mulheres. Não há uma identidade cristã própria dos homens e uma, secundária, de mulheres. Não existe apartheid sacramental, mas dão-nos a ideia do contrário. Como dizia uma criança de 12 anos: parece-me a mim que, de facto, Deus gosta de mulheres, mas dizem-me que Deus prefere os homens. É o resultado da triste imagem oferecida pelos ministérios ordenados!
O terreno está armadilhado contra as mulheres [5]. A restauração das diaconisas não me parece que vá ser difícil. O Papa deseja ir mais longe. Acaba de abrir uma grande janela, ao ver tantas portas fechadas. Pela sua expressa vontade, a celebração litúrgica de Santa Maria Madalena, a 22 de Julho, passou a figurar, no Calendário Romano Geral, ao mesmo título que as festas dos apóstolos, uma forma de evidenciar a missão e exemplo desta mulher na Igreja. Isto pode parecer um bocado ridículo: quase dois mil anos, para reconhecer que, afinal, Jesus não estava assim muito errado: fazer de uma mulher a evangelizadora dos evangelizadores, a apóstola dos apóstolos. Quem pode o mais, como não há-de poder o menos, ser chamada a presidir a uma celebração da Eucaristia?
[1] Lumen Gentium nº 11
[2] Aparecida, Brasil, 2007
[3] Cf. Conclusão do referido documento, nº 180
[4] Lc 8, 2s, financiam o projecto de Jesus; Mc 15, 40s e Mt 27, 56, seguiram Jesus até à cruz. Se nos Sinópticos o Ressuscitado aparece primeiro às mulheres, que devem anunciar aos discípulos o ocorrido, em João, 20, 11-18, é M. Madalena – não Pedro! – que recebe a missão de ser a apóstola dos apóstolos.
[5] Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré e as mulheres. A propósito de Maria Madalena, Angra do Heroísmo, 2011
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